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Onde a cultura do cancelamento e o crime de stalking se encontram

Cultura do cancelamento na internet e crime por stalking

A cultura do cancelamento na internet é uma reação social feita por usuários com o propósito de punir uma pessoa física ou jurídica por ato tido como reprovável por um grupo de pessoas. Com isso, há geralmente uma exposição massiva da atitude “condenada” em redes sociais. Considerando o verbo “cancelar”, a ideia de determinadas pessoas é, literalmente, interromper o apoio dado ao alvo de críticas (deixando de seguir o perfil de determinada pessoa pública ou deixando de consumir produtos de determinada marca, por exemplo), tornando-se, assim, a “cultura do cancelamento” um movimento de boicote em nome de uma suposta justiça social.

O novo crime de stalking, por sua vez, tipificado pelo artigo 147-A do Código Penal assim que entrou em vigor a Lei 14.132/21 [1], é definido pela conduta de “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.

É importante lembrar que o texto de lei referente ao crime foi sancionado pelo atual presidente e aprovado pelo Senado Federal em sessão dedicada a questões femininas, durante a comemoração do Dia Internacional da Mulher, uma vez que busca principalmente proteger as mulheres, o maior alvo desse tipo de crime e outras violências de gênero, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2017 que apontam o Brasil como o país com a quinta maior taxa de feminicídio [2].

Com isso, poderia a cultura do cancelamento e o novo crime de stalking estarem relacionados? De certo que conceitos distintos, no entanto, o ato de cancelar alguém na internet pode ser caracterizado como uma forma cyberbullying [3], quando realizado de forma contínua por uma mesma pessoa, o que, por consequência, pode incorrer no crime de cyberstalking e fazer com que o autor do ilícito, se comprovado, seja penalizado.

Quando alguém sofre bullying ou é stalkeado a partir de um “cancelamento” no mundo virtual, os efeitos causados pelas críticas podem transcender os meros aspectos financeiros e de imagem, trazendo, assim, consequências emocionais graves e até mesmo atitudes extremas, principalmente se a vítima enfrentar doenças como ansiedade ou depressão.

Há relatos no sentido de que uma digital influencer, por exemplo, cometeu suicídio em razão dos ataques de ódio que sofreu após ter compartilhado a decisão de “se casar sozinha” depois da desistência do então noivo. Recentemente, também, alguns participantes de um reality show foram duramente criticados por seu comportamento como “jogadores” dentro do programa e, enquanto estavam sem acesso aos seus perfis oficiais em redes sociais, seus filhos e pais tiveram de pedir publicamente para que usuários parassem com ameaças e xingamentos.

Nessa perspectiva, e considerando que a cultura do cancelamento ultrapassou a intenção inicialmente genuína de repreender determinada atitude para se transformar em um movimento de boicote que beira o linchamento virtual, carregado de verdadeiras ameaças, o agente que, com habitualidade, não apenas incomodar a vítima, mas deixá-la sob seu controle, passando a perturbá-la para que sinta constante medo e ansiedade, pode incorrer na pena prevista de reclusão de seis meses a dois anos e multa. A exceção da infração de menor potencial ofensivo é se o crime for cometido contra criança, adolescente, idoso ou mulher por razões de gênero — normalmente as principais vítimas, conforme mencionado quando da aprovação do então projeto de lei pelo Senado Federal.

Diante desse cenário, constata-se que a vítima, que até então poderia adotar providências no âmbito cível para fins de obter indenização pecuniária ou criminal, a fim de enquadrar o agente responsável por determinadas condutas por crimes de injúria, difamação, calúnia e/ou ameaça, agora também poderá buscar a penalização de determinado usuário que ultrapassar os limites legais à luz do novo crime de stalking.

Por outro lado, nota-se com a modificação do ordenamento jurídico e as constantes orientações disponíveis em canais de atendimento [4] incentivados por diversas empresas e organizações, como é o caso da Safernet [5], que tem sido possível aos usuários identificar se estão sendo vítimas ou ainda se estão cometendo eventual crime. Até porque a ideia do novo texto penal é também dar mais força ao movimento que busca promover cada vez mais um ambiente digital saudável, harmônico e seguro para todos na internet.

Conclui-se, assim, pela necessidade de as pessoas distinguirem curiosidade de admiração, bem como diferenciarem o que pode ser uma mera crítica amparada pela liberdade de expressão ou livre manifestação de pensamento e o que pode ser uma ofensa direta capaz de provocar danos a terceiros. É preciso, portanto, que os usuários, acima de tudo, se policiem quando pretendem “cancelar” alguém, pois determinadas condutas podem ser encaradas como obsessão e perseguição, a partir de ameaças ou atitudes que provoquem uma violação de privacidade, situações dessa cultura do cancelamento que são enquadradas no novo crime de stalking.

O novo crime nada mais é do que o reflexo de uma preocupação para que as pessoas tenham ponderação ao criticar e manifestar opiniões ou atitudes sobre determinadas pessoas, diante de uma sociedade cada vez mais intolerante com o próximo que, como qualquer ser humano, tem o direito à tranquilidade e à privacidade, dando ainda especial atenção às mulheres vítimas de violência doméstica ou ataques digitais.

Inclusive, vale dizer que os tribunais [6] do país há alguns anos já tratavam do assunto com base na Lei das Contravenções Penais, de modo a reconhecer que a intromissão indevida na vida íntima de alguém além de caracterizar dano moral, pode também ser enquadrada na contravenção penal tipificada, cuja pena era restrita a alguns dias de prisão simples ou substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos na modalidade de prestação de serviços à comunidade. Agora, porém, com a previsão tipificada no Código Penal, e não mais como contravenção penal, é necessário ter mais cuidado com as atitudes perpetradas, incluindo àquelas cometidas em ambiente virtual, em razão do agravamento das penalidades previstas que passaram de uma pena máxima de dois meses com alternativa de multa para uma pena mínima de seis meses, podendo ser de até dois anos, com possibilidade de aumento de metade e, ainda, acrescida de multa.

[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14132.htm.

[2] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/03/09/senado-aprova-criacao-do-crime-de-stalking.

[3] O bullying é uma forma de agressão física, verbal e psicológica que se mostra sistemática e contínua, fazendo com que um indivíduo ou um grupo ataque sistematicamente uma vítima com base em sua aparência ou no seu comportamento, que em geral não está enquadrado no padrão de normalidade estabelecido pelo grupo social. O cyberbullying, por sua vez, é a extensão da prática do bullying do ambiente físico para o plano virtual. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/cyberbullying.htm.

[4] https://www.helpline.org.br/helpline#.

[5] https://new.safernet.org.br/content/ciberstalking.

[6] TJRS – Apelação Cível Nº 70074154501 – Nona Câmara Cível – Rel: Eduardo Kraemer, J. 30/08/2017; TJES – Apelação Criminal Nº0004028-18.2019.8.08.0011 – 4ª Turma – Rel. Marcelo Mattar Coutinho.

 

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