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O “Tribunal da Internet” e os efeitos da cultura do cancelamento

O “Tribunal da Internet” e os efeitos da cultura do cancelamento

De acordo com o dicionário australiano Macquarie, a “cultura do cancelamento” foi eleita o termo do ano de 2019, e não é para menos. Mesmo não tendo um marco exato de origem, a cultura do cancelamento aparentemente teve início a partir da mobilização de vítimas de assédio e abuso sexual (Movimento #MeToo), que ganhou maior visibilidade em 2017 por força das denúncias realizadas em Hollywood.

Desde então, mesmo o Movimento #MeToo traduzindo a coragem de se expor problemas há anos escondidos, a cultura do cancelamento vem seguindo um caminho que aparentemente diferencia-se da iniciativa de conscientização e debate de assuntos relevantes no âmbito digital e no âmbito real, como assédio, racismo, homofobia, etc.

A cultura do cancelamento tem chamado a atenção, principalmente nas redes sociais, por tratar-se de uma onda que incentiva pessoas a deixarem de apoiar determinadas personalidades ou empresas, públicas ou não, do meio artístico ou não, em razão de erro ou conduta reprovável. Nos termos da definição da palavra “cancelar”, a ideia do movimento é literalmente “eliminar” e “tornar sem efeito” o agente do erro ou conduta tidos como reprováveis.

Ao analisarmos o movimento sob o prisma das modalidades de regulação da Internet proposta por Lawrence Lessig, composta por: direito, normas sociais, mercado e arquitetura1, podemos considerar a cultura do cancelamento como uma sanção imposta pelos próprios usuários no âmbito na Internet, diante da violação de normas sociais existentes. Assim como as demais modalidades de regulação, as normas sociais são eficientes, uma vez que inibem o comportamento reprovável por parte da comunidade que assim o entende.

Exemplo que demonstra a eficiência das normas sociais é a campanha de boicote à publicidade (#StopHateforProfit), iniciada no último dia 17. A ideia foi aderida por diversas empresas que manifestaram interesse em suspender seus anúncios em uma das maiores redes sociais da Internet, de modo a protestar contra “discurso de ódio” e pressionar a empresa para adotar medidas satisfatórias e criar mecanismos eficientes de combate. Em contrapartida, outra gigante da tecnologia, informou maiores medidas internas e externas para combater o racismo e aumentar a representatividade na empresa, reforçando as políticas já existentes contra o discurso do ódio.

Ocorre que, especificamente com relação à cultura do cancelamento, e ao contrário do Direito em que há um devido processo legal para justificar uma punição ou não, o “tribunal da Internet” não costuma oportunizar sequer o exercício do contraditório. Na maioria das vezes, aliás, a cultura do cancelamento costuma ter efeitos imediatos, onde a onda de boicote tem início tão logo o erro ou conduta tidos como reprováveis são notados e expostos. Tal imediatismo, porém, traz à tona certa intolerância e muita polarização, demonstrando assim que a sanção antecede a defesa. Dessa forma, o ambiente virtual torna-se hostil, seletivo e, por vezes, injusto.

Nota-se que, a partir da constatação de erro ou conduta reprovável por um grupo de pessoas, cria-se um movimento na rede social de exposição para que, não somente os usuários deixem de “seguir” a pessoa ou de comprar determinada marca, por exemplo, mas também para que parem de dar visibilidade ao trabalho de alguém ou determinada empresa. Por meio da onda de ataque aos perfis em redes sociais, os efeitos são sentidos em todos os aspectos: na vida pessoal de pessoas físicas que perdem trabalhos, contratos, patrocínios e até desenvolvem problemas psicoemocionais, bem como na atividade de empresas que deixam de realizar vendas, atender clientes, etc.

Um dos exemplos recentes da cultura do cancelamento nas redes sociais foi ocorrido com uma digital influencer do mundo fitness que, durante a pandemia e o isolamento social, meses após ser diagnosticada e “se curar” do coronavírus, reuniu alguns amigos em sua casa, fazendo publicações da “festinha”. A anfitriã foi imediatamente cancelada nas redes sociais, com a consequente perda de diversas parcerias e rescisão de contratos. E apesar do pedido de desculpas e reconhecimento do erro, o cancelamento se manteve, beirando o linchamento virtual e fazendo com que ela desativasse seu perfil em uma de suas redes sociais.

Nesse contexto, observa-se que o “Tribunal da Internet” não realiza seus julgamentos com igualdade ou proporcionalidade. Primeiro, porque deixa-se de discutir ideias e passa-se a discutir pessoas ou empresas. Segundo, porque poucos preferem ouvir, entender e formar uma opinião antes de atacar. Terceiro, porque outras pessoas ou empresas envolvidas em situações análogas, por exemplo, não sofrem sanções na mesma intensidade que as “canceladas”. Quarto, porque, no mundo virtual, é muito tênue a linha entre a crítica construtiva e o ataque revestido ofensas.

Apesar dos julgamentos, porém, a cultura do cancelamento também pode gerar um efeito contrário ao pretendido, já que a proporção da exposição faz com que a pessoa ganhe mais visibilidade nas redes sociais e, a depender de seus próximos passos, acabe transformando a visibilidade do ocorrido a seu favor, fazendo mais sucesso e ganhando mais engajamento. Numa breve analogia, comparar o Direito com o “Tribunal da Internet”, seria como se, após a sentença do “cancelamento”, o recurso do “cancelado” fosse provido para afastar a condenação.

O que se extrai de interessante desta dicotomia na cultura do cancelamento é que, não apenas comportamentos reprováveis são objeto da onda de boicote, mas também opiniões contrárias sobre determinados temas. E em que pese a liberdade de expressão seja um direito fundamental, isso acontece porque muitos usuários ao se depararem com divergências, ao invés de promoverem um debate saudável, dão lugar à cultura do cancelamento, boicotando pessoas físicas ou jurídicas.

Acontece que, além do mero “cancelamento”, os ataques virtuais tornam-se massificados e, por muitas vezes, extrapolam os limites da livre manifestação de pensamento de modo a ensejar, de fato, um linchamento virtual que, mesmo revestido de boa intenção, pode provocar uma propagação de discurso de ódio e ainda, incorrer em crimes como injúria ou difamação. Em situações como esta, o “cancelado” que não encontra formas de se justificar sobre o ocorrido em tempo de reparar sua imagem, acaba por adotar medidas judiciais em face daqueles que propagaram ofensas, divulgaram informações eventualmente falsas e coisas do tipo.

A cultura do cancelamento, portanto, que teve origem em um movimento que promovia denúncia e discussão de temas relevantes, hoje em dia acaba acarretando o descarte do debate saudável, impondo, de forma imediata, a sanção ao agente, sem viabilizar a defesa prévia ou eventual aprendizado, uma vez que não possui viés de educar e reintegrar, mas apenas excluir. E ainda que tal movimento tenha maior relevância quando nos referimos a pessoas ou empresas de notoriedade pública, é certo que atinge pessoas anônimas que, a partir de eventual erro ou conduta reprovável, podem ser igualmente “canceladas” por um grupo de amigos, colegas de trabalho, etc.

A pergunta que fica diante de tantos julgamentos e sanções imediatamente impostas sem a possibilidade de defesa ou reflexão é: como seria se todos fossemos “cancelados” por um erro ou conduta reprovável, já que estamos em constante evolução? Na mesma medida em que a imperfeição é reconhecida, é crescente o número de pessoas que optam por não compartilhar seus pensamentos sobre determinados temas por receio do cancelamento e dos danos – psicológicos, de imagem e patrimoniais – dele decorrentes.

Nas palavras do atual Ministro Alexandre de Moraes: a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente a informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também aquelas que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a democracia somente existe a partir da consagração do pluralismo de ideia e pensamento, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo2. E, na direção inversa ao entendimento defendido pelo Supremo Tribunal Federal inclusive no histórico julgamento da ADPF 130, percebe-se que, pessoas com medo da cultura do cancelamento virtual, deixam de colaborar com a democracia.

Com isso, o propósito de exposição de temas para que haja liberdade de comunicação social, garantindo-se a livre circulação de ideias e informações de forma pluralista, na realidade, tornou-se uma ferramenta de autocensura ao invés de promover o debate, como a contranarrativa3. A cultura do cancelamento, na forma como praticada atualmente, afeta, ainda que de maneira indireta, o exercício dos direitos da livre manifestação de pensamento e da liberdade de expressão, obstando o debate de questões que, de forma saudável, traria benefícios para a sociedade ainda promoveria o progresso intelectual e a evolução pessoal de cada um.

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