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Maior ação coletiva do mundo é financiada por fundos de litígio

Maior ação coletiva do mundo é financiada por fundos de litígio

Se o escritório de advocacia Pogust Goodhead não recebesse um montante de recursos entre de £ 70 milhões e £ 150 milhões de fundos de litígio para financiar a maior ação coletiva do mundo contra a mineradora anglo-australiana BHP Billiton – que tramita no Reino Unido –, provavelmente esse processo não existiria.

A ação coletiva tem mais de 700 mil demandantes que buscam indenização de US$ 66 bilhões (valor estimado) por suposta negligência na operação da Barragem de Rejeitos do Fundão, em Mariana (MG), que se rompeu em 2015. São comunidades indígenas (Krenak, Tupiniquim, Pataxós e Guarani), quilombolas, prefeituras, estados brasileiros, empreendimentos, instituições, empresas e associações de todos os tipos que estão no polo passivo da ação.[1]

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Há, certamente, registro de outras ações coletivas com maior número de demandantes, mas que foram rejeitadas pela Justiça. É o caso de 1,5 milhão de mulheres empregadas por uma rede de varejo norte-americana que ajuizaram ação coletiva por discriminação de gênero, derrubada na Suprema Corte dos EUA.

No caso da BHP, os demandantes afirmam terem sido vítimas das repercussões decorrentes do rompimento da Barragem de Rejeitos do Fundão, no Complexo Industrial Germano, em Mariana, há oito anos, operada pela Samarco, joint venture das mineradoras Vale e BHP, liberando 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de ferro e outros particulados.

O episódio do colapso da estrutura da barragem é considerado o maior desastre ambiental do Brasil e do mundo envolvendo barragem de rejeitos de mineração, além de ter fortes componentes sociais, sanitários, morais etc. Ao todo, 19 pessoas morreram e toneladas de lama tóxica seguiram por mais de 600 km pelos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce até atingir a foz deste último no litoral do Espírito Santo, solapando a biodiversidade e a cobertura vegetal no seu trajeto. 

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais calculam que 1.430 hectares foram atingidos pela lama e não podem mais ser utilizados para uso agropecuário.[2]

A ação coletiva tem um peso jurídico maior porque dá voz a milhares de indivíduos com interesses comuns que, em sua maioria, são vulneráveis, além de evitar o ajuizamento de milhares de demandas individuais repetitivas e emprestar celeridade às ações judiciais e à reparação dos direitos lesionados.

Mas, pela sua complexidade, as ações coletivas exigem dos advogados estratégias e organização de esforços para obter sucesso e efetividade na demanda processual.

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Assim sendo, a relação dos fundos de litígios com os demandantes é negocial e não processual. Portanto, eles não exercem controle ou poder decisório sobre os atos do processo, seja no âmbito de investigações,  provas ou possíveis acordos, que ficam nas mãos dos advogados.

No entender da mineradora BHP, a ação no Reino Unido é desnecessária pois duplicaria questões já em análise pela Justiça brasileira, tendo recorrido à Suprema Corte britânica nesse sentido, sem sucesso.

No Brasil, a joint venture das mineradoras conseguiu um acordo com os governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo para indenizar as vítimas em R$ 20 bilhões ao longo de 15 anos. Esse acordo foi rejeitado pelo Ministério Público Federal, que ingressou com nova ação pleiteando R$ 155 milhões para reparar o direito das vítimas.

Fora do litígio, também foram firmados Termos de Transição de Ajustamento de Conduta entre os governos e as mineradoras, estabelecendo programas de reparação e indenização por meio da criação da Fundação Renova (2016-17), entidade de direito privado sem fins lucrativos, com Aditivo do MPF para mudar o sistema de governança da fundação em que predominavam as mineradoras. 

Essa alternativa extrajudicial foi considerada uma privatização do desastre ocorrido que, com o tempo e dificuldades de implantação, levou a uma “rejudicialização” do caso e se desdobrou em inúmeras ações judiciais coletivas e milhares de ações judiciais individuais por pessoas atingidas, impondo inúmeros desafios à tutela jurídica no país.[3]

As mineradoras apontam um quadro que consideram mais favorável nessa barafunda judicial. Segundo a Fundação Renova, o ano de 2022 foi encerrado com pagamento de indenizações de R$ 133,57 bilhões para 409,4 mil pessoas. A Samarco usa o Sistema Indenizatório Simplificado para que categorias com dificuldades de comprovação de danos (lavadeiras, artesãos, pescadores de subsistência e outros) tenham algum tipo de reparação. Todos esses elementos estarão presentes na ação movida no Reino Unido.[4]

A ONU recebeu denúncias sobre a falta de reparação justa à catástrofe de Mariana, entendendo que o Estado brasileiro é o garantidor do respeito aos direitos humanos das comunidades afetadas.

Recentemente, o Comitê de Direitos Humanos da ONU condenou o governo australiano a compensar os povos tradicionais do Estreito de Torres, que possuem identidade única e são frequentemente confundidos com aborígenes do continente. As ilhas integram o estado australiano de Queensland, situado na fronteira com a Papua Nova Guiné.

Espalhados por uma área de 48 mil milhas quadradas, as comunidades são constituídas por pescadores, agricultores, caçadores e coletores, organizadas em clãs. A bandeira dos ilhéus simboliza um Dhari, elmo com uma estrela branca de cinco pontas no meio e listras verdes (terra), pretas (população) e azul (mar). No Estreito de Torres, esses povos foram escravizados para retirada de pérolas no século 19.

Para verem reconhecidos seus direitos, os povos tradicionais do Estreito de Torres apresentaram, de forma inovadora, petição ao Comitê de Direitos Humanos da ONU que, no ano passado, em decisão histórica, concluiu que a Austrália falhou em proteger os indígenas contra as mudanças climáticas e violou seus direitos de ter sua cultura e liberdade para viver seu modo de vida tradicional,

uma vez que a crise climática degradou o ecossistema, impedindo a realização de cerimônias que só ganham significado se realizadas em terras nativas;  interferiu na subsistência, uma vez que houve redução dos alimentos com o aumento do nível do mar, que afetou os coqueiros, cujos frutos e água são fundamentais na dieta dos ilhéus. A crise climática também violou seus direitos humanos, pois graves inundações destruíram túmulos e deixaram restos humanos de seus ancestrais espalhados pelas ilhas.[5]

No caso da ação contra a BHP no Reino Unido, ela tornou-se possível porque a mineradora é listada na Bolsa de Londres. Diante da insatisfação com a indenização obtida no Brasil, 200 mil reclamantes brasileiros ingressaram na Justiça do Reino Unido em 2018. A ação foi rejeitada inicialmente, mas em maio de 2021 o Tribunal de Apelações reverteu a decisão e permitiu que o processo prosseguisse.

Neste ano, o Tribunal Superior rejeitou pedido da BHP para adiar o julgamento para 2025, mantendo a data de 2024. 

O argumento para acatar o julgamento veio de um dos magistrados, Lord Justice Underhill, para quem a ação tinha uma “vantagem real e legítima para os requerentes”, uma vez que “os recursos disponíveis no Brasil não são tão obviamente adequados que se possa dizer que são inúteis e um desperdício prosseguir com processos neste país”. Com o tempo, o número de vítimas triplicou no polo passivo, assim como cresceu o ressarcimento pretendido.[6]

A decisão do magistrado britânico não deixa de ter sentido. No Brasil, não houve “uma padronização das indenizações individuais em valores abaixo do suficiente para se buscar um processo de reparação integral e de remediação efetiva para as pessoas e populações atingidas.

Na sentença que inaugurou o Novel [Novo Sistema Indenizatório Simplificado], a justificativa para a adoção da noção de ‘justiça possível’ foi feita com base no argumento de inaptidão das regras clássicas de matriz civilista do direito brasileiro para a resolução de demandas de alta complexidade e extensão.

A decisão propôs uma abordagem para a indenização de danos de soluções medianas e de uma matriz indenizatória comum, elaborada por meio de um método de valoração estimado, previsto para alguns danos. Essa decisão afastou a instrução individualizada de cada pessoa atingida e estabeleceu um patamar comum de valoração de danos a partir da determinação de algumas categorias profissionais”.[7]

Os fundos de litígios podem envolver recursos de várias fontes, inclusive de investidores individuais, fundos soberanos, de pensões, hedge, dentre outros, visando dar apoio financeiro a processos que reúnem chances de vitória, pois quanto mais meritório for o pleito, mais oportunidades de sucesso terá nos tribunais, constituindo-se ainda como uma forma de acesso à justiça para os mais carentes.

Ao se comprometer a arcar com os custos judiciais de uma das partes terá, em contrapartida, direito a receber parcela do resultado do litígio obtido pelo(s) demandante(s). No caso de insucesso da ação, os fundos arcam com os prejuízos do investimento.

Pela complexidade da ação contra a BHP, este julgamento terá o condão de construir jurisprudência para empresas com impactos extraterritoriais e cujos negócios podem gerar danos continuados sobre as populações atingidas.

O desafio está também no emprego de fundos de financiamento de litígios em um processo jurídico de dimensão gigantesca, que exige um grande volume de profissionais – todos os reclamantes terão um advogado britânico e um brasileiro –, além da necessidade de uma plataforma de tecnologia para tornar viável este tipo de prática jurídica.

Certamente, será um leading case no mercado jurídico internacional e que poderá ser referência também para a Justiça brasileira.


[1] O custo de £ 150 milhões é estimado no caso de a ação chegar a julgamento. https://www.smh.com.au/business/companies/push-for-bhp-boss-to-give-evidence-in-brazil-dam-disaster-20230516-p5d8pu.html

[2] Disponível em: https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/8410974/tragedia-em-mariana-producao-agropecuaria-em-areas-atingidas-esta-comprometida

[3] Disponível em O rompimento da barragem do fundão – análise de marginalização dos atingidos na governança pós-desastre: https://www.revistas.usp.br/rco/article/view/186049/183053

[4] Disponível em: https://www.fundacaorenova.org/release/pagamento-de-indenizacoes-chega-a-r-1357-bilhoes-em-2022-com-crescimento-de-546-em-relacao-ao-total-pago-ate-o-fim-de-2021

[5] Disponível em:

https://www.ohchr.org/en/press-releases/2022/09/australia-violated-torres-strait-islanders-rights-enjoy-culture-and-family

[6] Disponível em: https://disputeresolution.howardkennedy.com/post/102ibl1/bhp-faces-largest-ever-class-action-lawsuit-for-mining-disaster-in-brazil

[7] HENRIQUES DIAS, Thaís. O direito como campo de conflito no caso do crime da Samarco/Vale/BHP: disputas e contradições em seu processo de reparação. Insurgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, Pré-publicação, p. 1-24, 2022.


RICARDO FREITAS SILVEIRA – Sócio-head da Lee, Brock, Camargo Advogados, doutorando no IDP (Instituto Brasileiro de Ensino), mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP e especialista em Negócios Sustentáveis pela Cambridge University

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