O texto da reforma dos impostos sobre consumo, aprovado pela Câmara dos Deputados e enviado para análise do Senado, modifica o sistema tributário pátrio no nível hierárquico fundamental, ou seja, da Constituição Federal.
Há muitos pontos positivos no texto da reforma, principalmente no que tange à uniformização da legislação dos recém-criados imposto sobre bens e serviços (IBS), de competência compartilhada entre Estados e Municípios, e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União.
À adoção de não cumulatividade mais abrangente, à transparência da carga tributária das operações, à extinção gradual dos benefícios fiscais e progressiva desvinculação das renúncias fiscais unilaterais como meio de enfrentamento das desigualdades regionais, entre outras.
A reforma não caminhou bem, no entanto, no que concerne à criação de outro novo imposto, o chamado imposto seletivo. Isto porque, conforme proposto e atualmente aprovado pela Câmara dos Deputados, o imposto seletivo incidirá sobre a “produção, comercialização e importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”.
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Ora, a rigor, praticamente todas as atividades humanas são, em alguma medida, potencialmente prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Então, o que se tem é a abertura da possibilidade para que a União institua tributação pelo imposto seletivo da maneira que bem lhe aprouver sobre praticamente quaisquer operações com bens e serviços. Assim, os critérios da “seletividade” ― entenda-se seleção dos bens e serviços a serem tributados adicionalmente pelo novo imposto ― restaram inteiramente transferidos para o legislador infraconstitucional.
No discurso inicial, que não faz parte de qualquer projeto de texto legal, mencionava-se que a incidência iria abranger tabaco, bebidas e alimentos com excesso de açúcar.
Mas nada impede, já que há a permissão constitucional, que se institua tributação pelo imposto seletivo com relação a alimentos ultraprocessados, embutidos, com excesso de sódio, refrigerantes, frutas e legumes não orgânicos ou cultivados com a utilização de pesticidas, aparelhos de ar-condicionado, veículos movidos a combustível fóssil, embalagens plásticas, objetos plásticos e derivados de petróleo em geral, jogos eletrônicos, entre outros.
Ou seja, já que a Constituição não estabeleceu limites, o céu, a imaginação e, porque não, a necessidade de caixa são os limites.
Já se encontra, inclusive, ressalvado no texto até agora aprovado, que o imposto seletivo poderá incidir também sobre “operações relativas à energia elétrica, serviços de telecomunicação, derivados de petróleo, combustíveis e minerais”.
De seletividade, na verdade, há apenas dois norteamentos constitucionais previstos: o primeiro de que não incidirá o imposto seletivo sobre operações beneficiadas por alíquotas reduzidas de CBS; e o segundo de que o imposto poderá ser utilizado para manter a competitividade da Zona Franca de Manaus, ou seja, para onerar operações não conduzidas nas áreas incentivadas.
Além disso, enquanto coexistirem imposto seletivo e IPI (até a extinção deste último), não incidirá IPI nas operações tributadas pelo imposto seletivo.
De qualquer forma, note-se que a instituição do imposto seletivo tem enorme potencial de criar contencioso tributário, visto que, uma vez que a instituição do tributo tem como premissa o prejuízo à saúde ou ao meio ambiente, poder-se-ia alegar que não é qualquer grau de prejuízo, mas tão somente o prejuízo relevante é que poderia ensejar a criação do tributo. Qual seria, por exemplo, o prejuízo à saúde ou ao meio ambiente com relação aos serviços de telecomunicação? Emissão de radiação?
O ponto é que, aparentemente, a utilização do imposto seletivo como instrumento de desestímulo ao consumo de determinados bens ou serviços já foi abandonada na partida, para passar a fazer parte do arcabouço arrecadatório puro e simples.
Sem contar que, de uma maneira ou de outra, a criação do imposto seletivo poderia muito bem ser substituída pela majoração de alíquotas majoradas da CBS, inclusive, tendo em vista um dos principais alardeados objetivos da reforma tributária que é a simplificação do sistema.
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Aparentemente, criou-se a seletividade do imposto com critérios tão amplos que nada selecionam. Infelizmente, o imposto seletivo ― que tudo abrange em tese ― pode ser relegado a instrumento de greenwashing ou healthwashing, expressões em inglês que significam, na hipótese, respectivamente, que o pretenso discurso de proteção do meio ambiente e da saúde, na verdade, servem apenas para travestir interesses meramente arrecadatórios.
Tal sorte de coisas coloca-se em frontal contraposição a um dos princípios elencados na reforma tributária, qual seja o Princípio da Transparência da Tributação.
Deve-se salientar, ainda, que as alíquotas do novo imposto poderão livremente ser alteradas pelo Poder Executivo, por meio de mero decreto, o que, por si só, torna frágil a previsibilidade e segurança jurídica com relação àqueles contribuintes que se dedicarem à importação ou comercialização de bens e serviços sobre os quais tenha sido instituído imposto seletivo por lei.
Por simples decreto, poderá ser inviabilizado, por exemplo, determinado empreendimento pela alteração abrupta da tributação, no curtíssimo prazo, pois com relação a esse tributo apenas se aplicará o princípio da anterioridade nonagesimal, isto é, poderá ser cobrado com relação a fatos geradores ocorridos a partir de 90 dias do decreto que aumentar a alíquota.
Por fim, diferentemente do IBS e da CBS, o imposto seletivo integrará a base de cálculo dos demais tributos o que, por si só, cria cumulatividade e complexidade no sistema, gerando os já conhecidos problemas de exportação residual de tributos, falta de transparência da carga tributária e assim por diante.
Na esfera constitucional, portanto, foi praticamente dado cheque em branco à União para instituição do imposto que, em muitos aspectos, demonstra estar em contradição com os próprios fundamentos da reforma, tais como não cumulatividade ampla, transparência da tributação e, tão grave quanto, dotado de possibilidade de que as alíquotas sejam livremente manejadas pelo Poder Executivo.
Aguardem-se os próximos capítulos, inclusive para verificar em que medida a proteção à saúde e ao meio ambiente influenciarão o legislador infraconstitucional na seleção dos bens e serviços a serem tributados pelo novo imposto.
*Eduardo Cesar Muniz Bomfim é sócio de Lee Brock Camargo Advogados, mestrando em direito Político e Econômico pelo Mackenzie, especialista em Direito Tributário e Direito Empresarial pela PUC-SP e graduado em Direito pela UNESP.