EnglishKoreanPortugueseSpanish
EnglishKoreanPortugueseSpanish

Impacto da crise da Covid-19 no arrependimento no e-commerce

Marketplace e coronavirus

Com a deflagração da Covid-19 e as subsequentes medidas de quarentena para conter a pandemia, o chamado e-commerce (comércio eletrônico)/marketplace cresceu substancialmente, com as pessoas buscando cada vez mais a internet e os apps para consumir produtos e serviços.

Os serviços de delivery aumentaram sobremaneira, aplicativos de alimentação substituíram os jantares presenciais em restaurantes e os streamings e downloads de apps de filmes, músicas e, em especial, de games para o entretenimento das pessoas escalaram rapidamente diante do isolamento social enfrentado pelos brasileiros.

De mãos dadas com o consumo virtual, o arrependimento das compras realizadas online, seja de modo justificado em razão da desconformidade do produto ou serviço entregue com o objeto contratado, seja de forma imotivada pelo simples alegado descontentamento do consumidor, também se avultou nas relações negociais da internet e até hoje causa discussão sobre os seus limites.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 49, autoriza o consumidor a desistir de um contrato, no prazo de sete dias da sua assinatura ou do recebimento do produto ou serviço, sempre que tal contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial.

A ideia do legislador aqui foi a de conceder um prazo de reflexão ao consumidor, bem como permitir o exame e a avaliação do produto ou serviço que ele não teve contato até então, porque o adquiriu por telefone ou a domicílio, ou ainda, por que não, hodiernamente, pela internet.

De todo modo, algumas dúvidas sobre o tema persistem. Será que o consumidor pode se arrepender da compra de um produto virtual? Não me refiro aqui ao meio ou à forma de transação virtual, mas a um produto objeto de contrato que é intrinsicamente virtual. Por exemplo, será que o cliente pode alugar um filme de terror no sábado à noite e se arrepender de tê-lo feito porque não levou sustos, ou porque achou o final frustrantemente insatisfatório? As respostas seguem adiante (sem spoilers).

Quando se adquire uma bolsa ou um sapato, produtos físicos, mesmo que online, o direito ao arrependimento funciona de modo claro no caso do produto entregue não estar à altura das expectativas do consumidor, até porque somente viu o produto por meio de um anúncio do fornecedor. Até a entrega, não havia visto o produto em si.

Agora se o consumidor compra um game no seu celular, produto virtual, o fato de não ter tido a oportunidade de avaliá-lo no mundo físico não motiva o arrependimento, simplesmente pelo fato de o game não existir fora da internet. O game que o consumidor selecionou e adquiriu existe e é consumido apenas eletronicamente, sendo que a análise e experimentação foi feita tal como ele é, virtualmente.

Eu outras palavras, não existe uma discrepância entre a coisa virtual e a coisa em si, porque a coisa virtual é a coisa em si. Esta é a posição da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (Camara-e.net):

“(…) O direito de arrependimento no ambiente do comércio eletrônico não cabe a quem ‘usou e não gostou’. Trata-se, sim, do direito de quem, caso tivesse acesso direto ao bem, não teria efetuado a sua compra. Não cabe no conceito, por exemplo, o consumidor devolver um CD adquirido porque não gostou da música ou devolver uma entrada para cinema ou teatro após a data do espetáculo” [1].

Em que pese a vulnerabilidade do consumidor, não se parece que um direito ao arrependimento sem limites atenda ao princípio da equivalência negocial, expressão consumerista da isonomia constitucional, devendo a lei federal se coadunar com a Lei Maior e com a paridade de condições dela emanada.

Em especial, com relação a produtos de consumo imediato, adquiridos livremente com base em gostos e preferências particulares, não assiste ao consumidor o arrependimento posterior ao gozo da coisa, dado o caráter abusivo de tal prerrogativa.

Uma outra questão relevante e que merece mais discussão na seara do e-commerce são os problemas advindos do marketplace. O marketplace é uma plataforma de negócios predominantemente B2C (business to consumer) e C2C (consumer to consumer) que reúne diversas lojas ou vendedores em um único lugar, como se fosse um grande shopping center virtual.

Nesse tipo de situação, o direito ao arrependimento poderá ser exercido em face de quem? Em comparação elucidativa, trazendo a situação para o mundo offline, caso o consumidor vá a um shopping center e compre um produto com vício, a reclamação será direcionada à loja que vendeu o produto ao consumidor, e não ao shopping center, onde a loja está locada, até porque ambos possuem personalidades jurídicas distintas.

Na mesma toada, mas fora do estabelecimento comercial, se o consumidor faz o download de um game no seu celular por meio de um marketplace e se arrepende da compra, a pretensão deve ser direcionada ao desenvolvedor que disponibilizou o jogo na plataforma, ou seja, o dono do game, e não ao marketplace, que simplesmente hospedou o app do desenvolvedor.

O marketplace, nessa hipótese, existe tão somente para aglutinar aplicativos e aproximar compradores e vendedores, os quais realizam diretamente entre si o contrato que bem lhes convier. Como leciona Humberto Theodoro Júnior:

“Por essa prestação de serviços de divulgação e mera intermediação pode o provedor vir a ser responsabilizado civilmente, na eventualidade de falha do serviço a seu cargo. Nunca, porém, terá de responder pelo contrato de compra e venda, ultimado diretamente entre o anunciante e o comprador, sem participação do provedor a título algum” [2].

A jurisprudência mais acertada parece trilhar o mesmo caminho, com a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, ponderando em julgado que:

“(…) Não há como imputar ao locador o dever de fiscalizar a atividade efetivamente desenvolvida por cada locatário, de sorte a confirmar a eventual prática de algum ilícito civil ou criminal. A relação locatícia não confere ao locador poder de polícia sobre os locatários. O raciocínio se aplica ao meio virtual. Não há corno impor àquele que mantém site de intermediação de vendas o dever de prévia fiscalização das atividades desenvolvidas por cada um dos anunciantes, de modo a verificar se o produto oferecido é de procedência lícita” [3].

Com o advento da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), esse entendimento ganhou corpo em razão da norma principiológica disposta no inciso VI do artigo 3 deste diploma, que prevê a responsabilização dos agentes de acordo com as suas atividades, e do artigo 19, que determina a responsabilidade dos provedores de aplicações no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço.

Logo, observa-se que o marketplace responde por problemas relacionados com a cessão de espaço eletrônico para organização, acesso e download de aplicativos (como, por exemplo, a falha na disponibilização de um anúncio, ou a falha na concretização de uma transação) e não às transações em si, sobre as quais ele não possui ingerência.

Cabe aqui o alerta de que o Marco Civil da Internet é lei especial, que prepondera sobre as questões de utilização da internet no Brasil, não sendo pertinente uma interpretação isolada do Código de Defesa do Consumidor para assuntos de e-commerce sem a observação de seus princípios, sob pena de se inviabilizar o exercício dessas atividades que, em última análise, beneficiam milhares de consumidores.

O enfrentamento à Covid-19 potencializou o uso da internet e os negócios online. O consumidor deve ser sempre protegido e as ações irregulares de fornecedores, coibidas. Entretanto, os consumidores oportunistas devem ser igualmente combatidos, em observância à boa-fé objetiva que deve nortear qualquer relação negocial moderna, respeitando sempre as características do negócio envolvido e a legislação cabível, seja no campo físico ou virtual.

Marcelo Borelli é advogado especializado em Direito Digital e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).

Confira  as últimas atualizações jurídicas sobre o impacto do Coronavírus no Brasil e no mundo/a></a

Post Relacionados