A discriminação étnico-racial nas relações do trabalho no Brasil é um fato. De acordo com o Tribunal Superior do
Trabalho (TST), os atos discriminatórios foram o 88º tema mais frequente na Justiça Trabalhista em 2019, totalizando quase 50 mil processos.
Juridicamente, o tratamento diferenciado entre indivíduos ou grupos não constitui por si só um ato discriminatório, pois é necessário haver o requisito da comparação dentro de uma situação concreta no ambiente corporativo. Nesse sentido, se um empregado é tratado de forma diferenciada (por seus pares ou superiores), por sua etnia, gênero, situação financeira ou idade, isso é considerado uma forma de preconceito. Desigual somente foi incorporado à jurisprudência nacional a partir da Constituição Federal de 1988.
Etimologicamente, a palavra discriminar vem do Latim “discriminare” (verbo), que significa separação, diferença ou segregação de um indivíduo ou grupo pela sua diferença em relação a outro(s) por diversas razões. É formada pelo prefixo (Dis) – diferença e pela raiz (Crimen) -peneirar, separar.
A palavra discriminação no sentido que conhecemos hoje somente foi usada no âmbito jurídico no século XIX,
nos Estados Unidos, quando foi promulgada a 14ª Emenda Constitucional, assegurando cidadania por nascimento a negros escravos recém libertos depois da guerra civil norte-americana. A expressão ganha o Direito Internacional após a 1ª Grande Guerra e sua inserção no Direito Internacional e se universaliza com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) , depois da 2ª Grande Guerra, em 1945, por meio da Carta das Nações Unidas, que expressa em seu 1º artigo o respeito aos direitos e liberdades fundamentais “sem distinção de qualquer espécie”.
Outro marco importante foi a Convenção Internacional sobre todas as Formas de Eliminação da Discriminação
Racial da ONU, que delimitou o significado da discriminação racial como sendo “ toda distinção, exclusão,
restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou
resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício de um mesmo plano (em igualdade de
condições) de direitos humanos e liberdades fundamentais….” .
O Direito Trabalhista foi um dos que mais abordou questões discriminatórias até porque a OIT reconhece a proibição à discriminação como um direito fundamental do trabalho. No Brasil, a Lei 9.029/1995 delimitou as práticas discriminatórias nas relações trabalhistas e o país ratificou a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada pelo Decreto 62.150/1968.
Temos um exemplo recente na decisão da 1ª Vara do Trabalho de Florianópolis, que condenou uma empresa a
pagar indenização de R$ 50 mil a um empregado por comentários de cunho discriminatório e racista praticados dentro do ambiente de trabalho por colegas. O autor da ação, um trabalhador negro, foi demitido depois de 17
anos de trabalho na empresa e pediu uma reunião para saber quais foram os motivos da decisão de seu desligamento. Uma sindicância apurou que a empresa tinha conhecimento do tratamento discriminatório
destinado ao seu colaborar negro. O gestor já havia feito comentários, como “ o que este crioulo quer mais, já
havia clareado o departamento”.
Na sentença, o magistrado apontou: “o comportamento adotado pela empregadora desrespeitou as regras básicas
implícitas ao contrato de trabalho, no sentido de que a relação entre as partes que o integra deve ser fundada no
respeito mútuo”. Portanto, a discriminação racial nega o reconhecimento de que todas as pessoas humanas são
igualmente detentoras de direitos, impedindo a realização do Estado de Direito.
Em sua tese de doutorado, o pesquisador Humberto Bersani confirma que a discriminação étnico-racial está
presente no ambiente das corporações brasileiras. Ele pesquisou palavras chaves que remetiam à discriminação
racial nos processos judiciais que tramitavam nos 24 Tribunais Regionais do Trabalho do país e Tribunal
Superior do Trabalho. Ao todo, chegou a 1.044 decisões, das quais 52,1% tratavam de práticas racistas , sendo
que 66% foram cometidas por superior hierárquico da pessoa discriminada.²
Essa constatação está cada dia mais presente em incontáveis atos de racismo, preconceito e discriminação relatados em Varas do Trabalho por todo o país. Ao contrário dos Estados Unidos, que possuem vigorosa jurisprudência sobre a discriminação racial nas relações do Trabalho, no Brasil vivemos a tal “democracia racial”, que nega o racismo, mascarando muitas práticas discriminatórias que nem sempre são denunciadas pelos empregados à Justiça.
A despeito de a lei estabelecer que ninguém será prejudicado ou privilegiado por conta de sua raça e que qualquer discriminação aos direitos e liberdades fundamentais será punida – isso nem sempre ocorre. A discriminação racial no trabalho envolve uma relação triangular entre três atores: o empregador que discrimina, o colaborador que é discriminado e o favorecido passivo da discriminação, conforme o jurista Mario Ackerman. E sempre é bom lembrar que as práticas discriminatórias também podem envolver clientes ou parceiros negociais do contratante.
Para analisar a discriminação é fundamental adotar um modelo de comparação. Isso ficou patente na decisão
da 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, que condenou uma empresa pela prática de discriminação racial
por ter adotado guia de “estética padrão visual”. A ação, derrotada na primeira e segunda instâncias, foi movida
por uma empregada negra que foi proibida de usar cabelo black power porque estava fora dos padrões estéticos
estabelecidos pela empresa em seu guia, tendo de proceder ao amaciamento do cabelo ou mantê-los presos para
atender aos requisitos do manual estético. Isto é, a empresa ignorou a identidade e individualidade étnica-racial
de sua colaboradora afrodescendente ao exigir uma espécie de “branqueamento” de sua persona.
Como afirmou o líder negro pelos direitos civis Martim Luther King Jr “o arco do universo moral é longo, mas
inclina-se para a Justiça”, por isso a violação do princípio da igualdade está fortemente ligada ao que se chama o
patrimônio jurídico da pessoa humana. E mais do que reprimir a discriminação racial nas relações do trabalho, as
leis e o Judiciário brasileiros precisam criar condições de prevenção para que ocorram cada vez menos e deixem,
finalmente, de existir.
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