Com intuito de evitar a disseminação de notícias falsas, bem como combater os efeitos nefastos provocados pela desinformação durante as eleições, em agosto de 2019, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou o Programa de Enfrentamento à Desinformação.
O Programa contou com a colaboração de inúmeras instituições públicas e privadas, dentre as quais, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e principais plataformas de mídias sociais e de serviços de mensagens, como Google, Facebook, Instagram e WhatsApp. [1]
Os resultados obtidos pelo programa fizeram dele um dos principais pilares de combate às fake news nas eleições de 2020. Assim, em agosto de 2021, o TSE decidiu dar continuidade ao projeto, editando a Portaria n o 510, [2] que instituiu o Programa de Enfrentamento à Desinformação em caráter permanente. [3]
Se os desafios para o enfrentamento de fake news são imensos para as mídias sociais envolvidas com o programa, a situação piora em demasia caso outras plataformas também muito populares e bastante utilizadas pelos brasileiros, não participem dos esforços conjugados.
Esse é o grande desafio enfrentado atualmente no país, por conta da plataforma mantida pelo Telegram. Diferentemente de outras redes sociais, o aplicativo de mensagens Telegram, nunca fez parte do programa de enfrentamento à desinformação criado pela Justiça Eleitoral brasileira. Ao contrário: apesar de possuir uma expressiva rede de usuários em território nacional, o Telegram ainda não possui representação jurídica no Brasil.
Em dezembro de 2021, com objetivo de discutir possíveis formas de cooperação sobre o combate à desinformação, o presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, noticiou ter enviado um ofício ao ofício ao diretor executivo do Telegram, Pavel Durov, sugerindo um encontro para avaliar possíveis ações a serem tomadas em conjunto.[4]
A tentativa de contato feita pelo TSE, contudo, segundo a imprensa brasileira, teria sido inócua, não tendo havido resposta dos representantes da empresa até o momento em que este artigo é escrito.[5]
Essa falta de interlocução entre Telegram e Justiça Eleitoral ascendeu a discussão acerca de uma eventual determinação judicial visando o bloqueio do aplicativo para os usuários brasileiros.[6]
Antes de adentrar na questão da constitucionalidade do eventual bloqueio do uso do aplicativo, é importante averiguar a eficácia jurídica da comunicação que se pretendeu estabelecer entre o tribunal brasileiro e a empresa Telegram.
Segundo declara o aplicativo em seu website, sua sede é baseada nos Emirados Árabes Unidos, especificamente em Dubai[7].
Por seu turno, segundo as notícias veiculadas pelo TSE, o ofício emitido pela presidência do tribunal teria sido encaminhado digitalmente ao fundador da empresa, Pavel Durov, cidadão francês (desde novembro de 2021, ocasião em que supostamente renunciou à sua nacionalidade russa[8]), por sua vez domiciliado em São Cristóvão e Nevis, um pequeno Estado independente, localizado nas Antilhas britânicas.
Seria possível considerar que o ofício enviado pela secretaria da presidência do TSE, sabe-se lá se por e-mail ou por outra modalidade de comunicação permitida pelo próprio Telegram, poderia ser considerado uma comunicação oficial segundo as normas do direito internacional?
Havendo notícias de que a sede do Telegram situa-se em Dubai e que a residência habitual de seu proprietário localiza-se em São Cristóvão e Nevis, qualquer eventual conclusão de que houve desobediência ou falta de colaboração do preposto da empresa sem o trâmite da cooperação jurídica internacional, parece precipitado.
Aliás, a própria competência internacional das cortes brasileiras para demandar o Telegram, quando comparada a outras jurisdições, parece exagerada.
Segundo o artigo 15 do Código Civil napoleônico, vigente na França há mais de um século, a nacionalidade francesa recém adquirida por Durov faz com que as cortes francesas sejam automaticamente competentes para receber quaisquer medidas judiciais em face do proprietário do Telegram[9], assim como as cortes de Dubai (sede da empresa) ou de São Cristóvão e Nevis (domicílio do presidente da empresa).
Em síntese, não parece correto afirmar que o ofício enviado à Durov possa ser considerado eficaz no Brasil, para efeitos de se declarar sua desobediência perante as cortes nacionais ou ou mesmo que tenha havido má vontade da empresa frente ao problema das fake news nas eleições de 2022.
Analogamente, a possibilidade de bloqueio do Telegram no Brasil, ainda que se considere uma eventual eficácia negativa do ofício enviado fora dos padrões cooperacionais (e diplomáticos) não é menos polêmica.
Embora o bloqueio já seja questionável à luz do princípio da razoabilidade e proporcionalidade, a suspensão das atividades do aplicativo é também polêmica frente às disposições do Marco Civil da Internet, visto que as medidas punitivas previstas pelos incisos III e IV do artigo 12 ainda não se encontram regulamentadas.
Como ainda não existe um decreto regulatório que defina o procedimento a ser seguido para apuração e aplicação das penalidades previstas pelo artigo 11, logo, as penalidades dos incisos III e IV do artigo 12 do Marco Civil (suspensão temporária e proibição das atividades) parecem ser, por ora, inaplicáveis. [10]
Uma das ideias em debate é de que o Telegram não pode operar no Brasil enquanto não possuir representação no território nacional. Porém, vale aqui uma reflexão sobre o alcance do verbo operar: se a empresa não possui quaisquer representantes no país e seu produto é utilizado via a rede mundial de computadores, quem teria “operado”, propriamente, para que a disseminação de fake news ocorresse? Os usuários ou o detentor da ferramenta?
Em se tratando de comunicação digital, “opera-se” a transmissão da fake news entre o emissor e o receptor, independentemente da atuação ou da existência da mídia utilizada, seja ela virtual ou analógica.
Caso a fake news tivesse sido propagada no Brasil entre brasileiros – por hipótese – por meio de um cartão postal adquirido no Zimbabwe, teria a gráfica subsaariana que imprimiu o material utilizado “operado” no país?
Evidentemente, embora haja uma justa expectativa de que as grandes empresas de internet colaborem com as autoridades mundiais no combate às fake news, o argumento de que não há “operação” no Brasil não parece ser o mais convincente para se justificar o bloqueio do aplicativo a milhões de brasileiros.
Além disso, os efeitos do bloqueio parecem ser, a toda evidência, desproporcionais, ensejando a violação de preceitos fundamentais previstos pela Constituição Federal, como a liberdade de expressão e o acesso à comunicação. A própria questão do bloqueio punitivo do uso de aplicativo de comunicação está sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 403 e ADI 5527, relativas ao WhatsApp, sem ainda qualquer conclusão definitiva.[11]
Do ponto de vista prático, o bloqueio do Telegram no Brasil também seria um grande desafio. Primeiro, porque o bloqueio teria que partir de provedores de backbone e provedores de acesso à internet, que deveriam ser instados a impedir o acesso dos usuários brasileiros ao aplicativo, através da determinação judicial de que a tabela de nomes de domínio DNS sejam alteradas.[12]
O problema é que existem recursos que burlam essa providência, por exemplo, através de tabelas DNS disponíveis na rede que podem ser utilizadas pelos usuários.
Outra medida seria o bloqueio do endereço IP do Telegram. Nesse caso, também existem recursos disponíveis para driblar o bloqueio, como a utilização de um VPN.
De todo modo, independentemente da efetividade questionável de tais medidas, a reflexão que deve ser feita é se a suspensão ou o banimento do Telegram é a melhor solução para se combater as fake news, não obstante o fato de que pelo menos onze países[13] já declararam ter bloqueado o uso da ferramenta em suas respectivas jurisdições
Como dito, é muito provável que muitos usuários que se encontram nessas localidades possam estar burlando esses bloqueios, não obstante os esforços das respectivas autoridades.
O Brasil tem vivido um profundo e continuado desapontamento com suas instituições. Há um inegável vácuo entre as aspirações populares e o establishment político, em que a notória criminalização da política, causada pelos seguidos escândalos que tomaram conta do cenário nacional nos últimos anos, parecem justificar a sensação de falta de legitimidade de muitas de nossas lideranças.
Porém, informação equivocada (ou fake) se combate com (boa) educação e fontes confiáveis. Jamais com restrição ou censura.
A experiência tem mostrado que a concentração de esforços visando identificar e punir os financiadores das fakes news, em conjunto com uma ampla campanha de esclarecimentos à população, é a forma mais eficaz de se combater as fakes news.[14] Embora ainda não exista uma “bala de prata” para resolver esse grave problema que aflige toda a sociedade contemporânea, o simples e puro bloqueio do Telegram não parece ser a melhor alternativa.
[1] Disponível em: ; acessado em: 25 jan 2022.
[2]Disponível em: ; acessado em: 25 jan 2022.
[3]Disponível em: ; acessado em 25 jan 2022.
[4]Disponível em:
[5] “Sem resposta do Telegram, TSE estuda medidas contra ‘fake news’ nas eleições e possibilidade de o Congresso banir plataforma do Brasil”. Disponível em: ; acessado em: 25 jan 2022.
[6] “Cresce no TSE disposição de suspender funcionamento do Telegram”. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/cresce-no-tse-disposicao-de-suspender-funcionamento-do-telegram/. Acesso em 25/01/2022.
[7] “P: Onde fica a sede do Telegram? A equipe de desenvolvimento do Telegram está sediada em Dubai. A maioria dos desenvolvedores por trás do Telegram vem originalmente de São Petersburgo, a cidade famosa por seu número sem precedentes de engenheiros altamente qualificados.
A equipe do Telegram teve que deixar a Rússia devido às regulamentações locais de TI e tentou vários locais como sua base, incluindo Berlim, Londres e Singapura. No momento, estamos felizes em Dubai, mas estamos prontos para nos mudar novamente se as regulamentações locais mudarem.” Disponível em: ; acessado em: 25 jan 2022.
[8] Disponível em: ; acessado em: 25 jan 2022.
[9] “Article 15. Un Français pourra être traduit devant un tribunal de France, pour des obligations par lui contractées en pays étranger, même avec un étranger.” Em tradução livre: “Um francês pode ser levado a um tribunal na França por obrigações contraídas por ele em um país estrangeiro, mesmo perante um estrangeiro.”
[10] Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:
I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;
II – multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;
III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou
IV – proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11.
Parágrafo único. Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.
[11] “WhatsApp: Justiça do RJ manda bloquear aplicativo em todo o Brasil”. Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/07/whatsapp-deve-ser-bloqueado-decide-justica-do-rio.html>; acessado em: 25 jan 2022. “Justiça determina bloqueio do WhatsApp em todo o Brasil por 48 horas”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/12/1719934-justica-determina-bloqueio-do-whatsapp-em-todo-brasil-por-48-horas.shtml>; acessado em: 25 jan 2022.
[12] Domain Name System (Sistema de Nomes de Domínios) funciona como um sistema de tradução de endereços IP. Disponível em: http://www.tecmundo.com.br/o-que-e/829-o-que-e-dns-.htm#ixzz2ZvSB9Jwq>; acessado em 25 jan 2022.
[13] “Telegram já foi alvo de bloqueio em 11 países e preocupa o TSE nas eleições”. Disponível em: ; acessado em: 25 jan 2022.
[14] Segundo Ronaldo Lemos: “a expressão ‘follow the money’ (siga o dinheiro) foi popularizada pelo filme ‘Todos os Homens do Presidente’ (1976), que conta a derrocada do presidente Richard Nixon e o papel do bom jornalismo para isso. Seu significado é simples: várias formas de corrupção política podem ser desvendadas examinando as transferências financeiras entre as partes envolvidas (…)”. Disponível em: ; acessado em: 25 jan 2022.
*Solano de Camargo, pós-doutorando pela Faculdade de Direito de Coimbra; doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP; bacharel em direito francês pela Faculdade de Direito da Universidade de Lyon 3. Advogado, sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados
*Caio Miachon Tenorio, mestre em Direito pela Universidade Nove de Julho. Advogado, sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados