Depois do crescimento do greenwashing e da resposta fiscalizadora de agências reguladoras e dos investidores, o mundo ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) se volta para outro risco, igualmente relevante, a socialwashing (lavagem social), ou seja, a prática que envolve desconexão entre os dados do pilar “Social” e as iniciativas efetivas das organizações, que são comunicadas publicamente.
A taxonomia social — sistema de classificação do que é sustentável do ponto de vista social — é a bola da vez na agenda ESG e sinaliza que não está muito distante de se tornar uma realidade. A própria Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) já apontou a importância de mensurar as atividades sociais das empresas na esfera ESG, com base em três justificativas principais[1].
A primeira como forma de prevenir e coibir a lavagem social, medindo esse tipo de investimento por métricas, a exemplo do que ocorre com a taxonomia verde para as questões ambientais. Com regramentos, as empresas socialmente responsáveis poderão ser reconhecidas pelos investidores pelas suas efetivas práticas.
A segunda razão é para assegurar uma transição justa para um desenvolvimento sustentável, que deve estabelecer políticas ambientais, econômicas para todos, trabalhadores e comunidades, sem exceções, adotando uma perspectiva inclusiva e próspera. Esse modelo de transição deve ser levado em consideração pelos investimentos privados.
O terceiro ponto da taxonomia social seria auxiliar a identificar e mitigar os riscos sociais dentro dos critérios ESG, como violação aos direitos humanos, toda e qualquer discriminação no ambiente laboral e garantir segurança, saúde e bem-estar, além de enfrentar os riscos na cadeia de suprimentos decorrentes de parceiros negociais que venham a descumprir o pilar “S”.
Muitas organizações isoladamente já possuem uma abordagem social e criam impacto por meio de seus produtos e ações. É o caso da Tom’s Shoes, que doa um par de sapatos para uma criança carente a cada par de sapatos que comercializa no mercado de mais de 50 países.
As empresas que quiserem liderar mudanças sociais terão de considerar a proteção dos direitos humanos, não compactuar com trabalho forçado ou infantil.
Ser mais diversa e inclusiva frente a gênero, etnia, orientação sexual, religiosa, etarismo etc. no ambiente do trabalho e encampar sua função social, prevista constitucionalmente, no caso brasileiro. Na verdade, esses são tópicos que compõem parte dos princípios do Pacto Global da ONU e estão em conexões com o ESG.
O desafio para criar uma taxonomia social vem sendo enfrentado pela União Europeia, mas ainda há muitas dificuldades para definir métricas sociais, como estabelece o relatório final[2], publicado este ano. O tamanho das dificuldades para mensurar o pilar “S” poderá depender de padrões negociados internacionalmente.
O parâmetro de referência para essa nova classificação será a taxonomia verde, tendo como metas principais: trabalho decente, salário justo, segurança de produtos e serviços, além do crescimento inclusivo e sustentável envolvendo a comunidade em que a empresa está sediada.
Esse relatório final da União Europeia considera com sendo interdependentes, dentro da taxonomia Social, as convenções e tratados internacionais que devem ser observados pelas corporações, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Declaração Tripartite de Princípios da OIT sobre Empresas Multinacionais e Política Social, Pacto Global da ONU e muito outros acordos,
que abarcam direitos trabalhistas, inclusão social, não discriminação e demais direitos fundamentais. Segundo o relatório, ainda não é possível saber como será a taxonomia social, mas seu objetivo primordial consiste em evitar riscos.
Para a UE, o pilar Social deve ter uma abordagem centrada nos stakeholders (partes interessadas), sendo: 1) a própria força de trabalho de uma entidade (incluindo trabalhadores da cadeia de valor); 2) usuários finais ou consumidores; e 3) comunidades afetadas (direta ou através da cadeia de valor). Essas três esferas, por sua vez, se desdobram nos fatores de geração de postos de emprego, rede de proteção social, direitos trabalhistas e diálogos.
A presença dos stakeholders é paradigmática porque ajuda a criar pontes e engajamentos por meio de relacionamentos que são mutuamente benéficos no âmbito das corporações. Os interesses das partes acabam fomentando um círculo virtuoso que ajuda as empresas na definição de suas estratégias, processos e na transição cultural para a sustentabilidade, devendo gerar valor compartilhado.
O relatório sobre a taxonomia social europeia enfatiza, ainda, que a agenda do trabalho decente não é restrita ao mercado da União Europeia, mas abrange toda a cadeia de abastecimento das companhias europeias, sendo que os empregadores de países terceiros também possuem o desafio de adotar condições justas de trabalho e salvaguardas sociais mínimas, com respaldo do poder público.
No Brasil, vale ressaltar os dados deste ano (janeiro a junho) do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que constituem um avanço. Quase mil casos de trabalho similar ao escravo foram julgados e mais 1.078 ações estão pendentes de julgamento. As sentenças dos tribunais constituem bons antídotos a essas nefastas práticas seculares.
Na construção da taxonomia social da UE e diante de críticas de alguns setores produtivos também está na mesa de negociações a possibilidade da elaboração de um regramento consensual, que consiga reduzir impactos sociais negativos e aumentar os benefícios, sem ter o status de regulamento ou diretiva, mas constitua um conjunto de diretrizes fundamentais que serviriam como indicativos para as companhias utilizarem como parâmetros de atuação social.
As empresas se comprometeriam a lidar com suas deficiências no pilar “S”, sem pressão legal ou multas regulatórias.
Contudo, os exemplos de socialwashing são comuns. Um bem emblemático e recente vem dos Estados Unidos, onde empresas do setor financeiro anunciaram que garantiriam assistência médica para aborto a suas funcionárias, com deslocamento para Estados que mantivessem o direito, depois que o Supremo norte-americano derrubou o acesso ao aborto em todo o país, na decisão que ficou conhecida como “Roe v. Wade”.
Até aí, nenhum problema, mas esses mesmos bancos também fizerem doações para grupos de ativistas antiaborto. Dilemas éticos dessa natureza aproximam com mais rapidez as empresas da socialwashing.
Além da coerência, a questão da comunicação também é um elemento importante na armadilha da socialwashing. A Autoridade Europeia de Valores Mobiliários e Mercados (ESMA)[3], agência reguladora de toda União Europeia, por exemplo, tem focado no regramento de divulgações voltadas à sustentabilidade, incluindo o pilar Social.
Há proibição que o fundo empregue a terminologia ESG como se fosse um rótulo, quando não explica bem o conteúdo. Jargões como “investimento de impacto social”, somente se esse impacto for mensurável. Da mesma forma, a divulgação também deve ser clara e utilizar fundamentações que possam ser compreendidas por todo tipo de investidor.
A socialwashing está também fortemente ligada à cadeia de fornecedores das empresas, que pode ser vista como o calcanhar de Aquiles do pilar “S”, porque pode envolver trabalho escravo e infantil, tendo como medida mitigadora a necessidade de rastreabilidade e due diligence dos parceiros.
A prova dessas dificuldades está no registo de um episódio recente envolvendo duas grandes companhias de comercialização de grãos no Brasil, que teriam adquirido soja para exportação de uma fazenda no Mato Grosso do Sul, que ocuparia ilegalmente terras de comunidades ancestrais, obtidas por meio de grilagem, questão ainda em disputa na Justiça do Brasil.
Buscando se ajustar aos padrões regulatórios internacionais, os órgãos de controle brasileiros – Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários — também estão construindo uma modelagem para tratar os riscos ESG no mercado de capitais. A Resolução CVM 59 possibilita que as empresas apresentem informações ambientais, sociais e de governança nos seus formulários de referências, indicando dados de metrologia, auditagem, ODS, indicadores de desempenho etc.
Tudo visando dar mais transparência, simplicidade e confiabilidade às informações destinadas aos investidores e ao mercado. No ano passado, a B3 e a consultoria global Great Place to Work lançaram um índice de desempenho com foco nas melhores práticas do mercado trabalhista, que pode ser um embrião para métricas voltadas ao pilar Social, no futuro.
Na OCDE e na União Europeia, o desenvolvimento de uma taxonomia social para controle e verificação de práticas sociais tem como fio condutor o respeito aos direitos humanos e forte atuação dos stakeholders (partes interessadas) para amoldar as estratégias sociais corporativas. E, a despeito das críticas, os cálculos financeiros apontam sua viabilidade.
Um dos maiores players da indústria farmacêutica (Novartis) estimou seu impacto, anos atrás, com salários dignos e benefícios trabalhistas em US$ 7 bilhões; com redução de emissões e outras ações ambientais em US$ 4,7 bilhões e o resultado do impacto positivo em investimento ESG em US$ 71 bilhões. Os dados são do professor da Harvard Business School George Serafeim [4], que vem analisando a repercussão do ESG em milhares de corporações.
[1] Disponível em https://www.omfif.org/2022/09/why-we-need-a-social-taxonomy/
[3] Disponível em https://www.esma.europa.eu/document/autoridade-europeia-dos-valores
[4] Disponível em http://www.highmeadowsinstitute.org/wp-content/uploads/2021/07/Social-Impact-Efforts-That-Create-Real-Value.pdf
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
TEREZA CRISTINA OLIVEIRA RIBEIRO VILARDO – Sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA), mestranda em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie e MBA em Gestão de Empresas pela FGV