Antes do advento da tecnologia das redes sociais e do uso de smartphones e videogames, os jovens faziam mais uso da imaginação debruçados nos livros e HQs (histórias em quadrinhos). A imaginação reinava no mundo virtual de nossas mentes, conduzindo os sonhos. Por isso, não é difícil nos dias atuais ler uma HQ dos anos 1960 ou assistir um filme de ficção científica sobre tecnologias que só viriam a se materializar anos mais tarde.
Nessa linha de raciocínio, percebemos que o homem, desde a antiguidade, se desenvolveu através do pensamento e graças aos primeiros filósofos, talvez hoje, exista a inteligência artificial. Platão em sua teoria das ideias investigou o mundo virtual, a realidade virtual, o autor Massimo Citro cita uma interessante passagem “o intercâmbio entre o mundo e o antimundo acontece no reino intermediário, o “terceiro tipo” de Platão, “.
Ainda em seu raciocínio “Aos olhos humanos, o real (os bastidores) parece virtual, e o virtual parece real.” , isso traz à tona que o mundo virtual não é novidade, nem mesmo os algoritmos1, que de maneira semelhante nosso cérebro processa as nossas decisões.
Guimarães Rosa sabiamente dizia que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. O que é real? O sentido da palavra é tudo o que realmente existe; de fato real e verdadeiro, a realidade é refletida em nossas sensações no mundo que percebemos e sentimos.
Massimo Citro escreveu sobre o que é realidade, “Percebemos as sensações que temos no interior como se estivessem no exterior. Quando vemos, na verdade estamos olhando para dentro de nosso cérebro; quando ouvimos, escutamos um processo levado a cabo por nosso córtex; quando tocamos, recebemos estímulos gerados por nossos neurônios.” e por fim, “o mundo não é o que parece ser“.
Com base em tais premissas entendo que o homem nada mais fez do que realizar seus sonhos de infância em sua contínua busca para desvendar o código do universo, materializando agora com uso da tecnologia, o mundo virtual, é a percepção da não realidade que se torna realidade. Seria o Metaverso?
O mundo do ser digital é real e vice-versa, coexistindo e influenciando os seres humanos, por isso, talvez estejamos diante do maior desafio da ciência jurídica, ordenar e regulamentar um novo espaço virtual, agora não mais de nossas mentes, mas das máquinas, estas, fruto de nossa própria criação.
O desafio está em sistematizar e proteger os cidadãos da velocidade de processamento de dados que a nova tecnologia permite trazer, tanto para o bem quanto para o mal. Podemos listar centenas de benefícios trazidos com a tecnologia atual, sem se falar do que está por vir com o advento do 5G (a internet das coisas).
A contrapartida disso é o que está por trás, há aqueles que trabalhem com outros objetivos, com base nessa massa de dados (big-data)2, manipulando como desejar as preferências, de acordo com seu objetivo. Os riscos da má conduta, da falta de ética pode levar à concepção de aplicações discriminatórias.
A matemática e cientista de dados, Catthy O’Neil, pesquisou a discriminação algorítmica em um mecanismo de avaliação de professores americanos para promover ou demitir, de acordo com sua pontuação. Um homem foi preso injustamente nos Estados Unidos por ter sido confundido por outra pessoa através do sistema de reconhecimento facial da polícia. Isso precisa ser ajustado.
Como seria então a definição ética das decisões em situações de risco/acidente de um veículo autônomo? Ele atuará de acordo com a programação dos cientistas de dados, e da mesma maneira que nosso cérebro processa nossas decisões, adotará ações pré-definidas com base naquilo que foi programado, ou seja, o veículo autônomo não “pensa”, apenas processa.
Diante disso, ainda que não exista a máquina da singularidade, tudo que se vê foi programado por um ser humano, portanto, requer cercá-lo de normas que definam o que é certo e o que é errado, novamente, o bem versus o mal. Essa é a importância da legislação que aborda a conduta ética, tão abstrata ainda, mas importante como pontapé inicial.
Os conceitos PIA (Privacy Impact Assessment)3 vêm auxiliar o gerenciamento dos projetos: Perceba que não falamos aqui de tecnologias com fins militares e tampouco políticos, temas que requerem uma nova pesquisa.privacy by design4; privacy by default e privacy by security, são fundamentais para aplicação na concepção de novos serviços tecnológicos e as bases legais devem não só orientar, mas punir os infratores.
Nessa nova realidade, nem tudo ou quase tudo, não é notado, a programação matemática dos algoritmos está abaixo da linha do oceano e não podemos perceber, a única maneira de minimizar os impactos e a contínua evolução nos debates da sociedade; consultas públicas; iniciativas de Lei para proteger os cidadãos e educação constante.
O cenário mundial da proteção dos dados pessoais engloba mais de 140 países, destes, 118 Estados-Membros da ONU, além de dezenas de iniciativas pendentes que protegem os dados pessoais em todo o planeta. No Brasil temos a Lei Geral de Proteção de Dados, (LGPD – lei 13.709, de 14 de agosto de 2018), semelhante à norma Europeia (GDPR), trazendo as orientações básicas para o tratamento dos dados, por todo e qualquer tipo de empresa, pública ou privada.
Um parêntese para o significado da palavra tratamento, ele corresponde ao bom ou mau uso que se faz das coisas; cuidado ou negligência com que delas se trata, estabelecido na LGPD em mais de 20 condições de tratamento dos dados pessoais das pessoas naturais.
O contínuo e exponencial avanço da tecnologia tem demonstrado a importância da regulamentação perante tantos riscos e ameaças. Nesse breve contexto é possível chegar a uma primeira conclusão, de que, de fato, foi muito importante o início da vigência da LGPD, digamos até que “antes tarde do que nunca“, além de outras normas que chegarão, dentre delas, o Marco Legal da IA (PL 21/20).
Os dados pessoais representam um poder nunca antes percebido pelo homem comum, além do valor monetário que a massa de dados pode representar. O que significa incluir a proteção de dados no rol dos direitos fundamentais? a proteção dos dados pessoais agora tem como tutela a Constituição Federal, como contribuição filosófica acerca da teoria dos direitos fundamentais, como relação universal.
O autor Robert Alexy aborda a amplitude desse enquadramento, “as normas de direitos fundamentais são “(meras) normas de princípios” , que “indicam que, na ordenação das relações sociais e na solução de conflitos, deve ser conferido um peso especial a determinados interesses de liberdade (liberdades de crença, de opinião, de profissão e de propriedade etc.), em suma, à ideia de autodeterminação individual.”
No caso dos dados pessoais, entramos no rol dos direitos a proteção, bem destacados também por Alexy: “Por ‘direitos a proteção’ devem ser aqui entendidos os direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja contra intervenções de terceiros.”
Conceituado por Luiz Barroso, “os direitos fundamentais, por sua vez, são os direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico doméstico. Significam a positivação, pelo Estado, dos direitos morais da pessoa. “.
Essa conceituação é fundamental para o entendimento de que a inovação tecnológico trouxe à sociedade benefícios e riscos, necessitando adaptar o ordenamento jurídico à nova realidade para proteção de mais um valor intrínseco a dignidade da pessoa humana, que sem isso, poderia certamente desordenar o desenvolvimento das pessoas e ferir as liberdades conquistadas ao longo de décadas.
Compreendendo o cenário em que vivemos é de suma importância que se estabeleçam critérios morais e éticos para a conduta daqueles que fazem uso da tecnologia, sendo que o pontapé inicial foi dado com a LGPD; o Marco Civil da Internet; o Código de Defesa do Consumidor entre outras normas que estão por vir.
Mas destaco a iniciativa do Deputado Eduardo Bismarck através do Projeto de Lei nº 21/2020 que estabelece “princípios, direitos, deveres e instrumentos de governança para o uso da inteligência artificial no Brasil e determina as diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pessoas físicas e jurídicas, de direito público ou privado, e entes sem personalidade jurídica em relação à matéria.”
Diante de tamanha complexidade, uma sociedade de dados com altíssima velocidade de processamento e os riscos inerentes à má conduta nos levam a crer que o desafio do direito é proporcional, como poderíamos debater publicamente as questões de segurança e desenvolver Projetos de Lei ao passo que a velocidade da tecnologia estará sempre à frente.
A chave para reduzir tais impactos e harmonizar vem da teoria desenvolvida por Willis Santiago, aplicando-se o princípio da proporcionalidade, como o princípio dos princípios e a reinvenção dos direitos humanos. A autora Paola Cantarini destaca: “Assim sendo os procedimentos são a ponte que liga o sistema jurídico aos demais sistemas, sendo de fundamental importância para as operações de autor-reprodução judicial dentro dos sistemas.”
E, nesse sentido, deve-se “ressaltar a importância crescente do papel da magistratura, e a influência decisiva, em nossa sociedade hipercomplexa, de leis processuais, de procedimentos, possuindo até mesmo as normas das Constituições a natureza de normas processuais. ”
Barroso, Luís Roberto; Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9. ed – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed – São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
Santiago Guerra, Willis [et al] organizadores. Direito e inteligência artificial: fundamentos: vol. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
Santiago Guerra, Willis [et al] organizadores. Direito e inteligência artificial: fundamentos: vol. 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
Cantarini, Paola. Teoria Fundamental do Direito Digital: Uma Análise Filosófico-constitucional. Amazon. São Paulo, Brasil, 2020.
Citro, Massimo. O código básico do universo: a ciência dos modelos invisíveis na física, na medicina e na espiritualidade: tradução Humberto Moura Neto, Martha Argel; prefácio de Erwin Laszlo – 1. ed. – São Paulo: Cultrix, 2014.
O’Neil, Catthy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a
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1 Na matemática e ciência da computação, o algoritmo é uma sequência finita de ações executáveis que visam obter uma solução para um determinado tipo de problema. vide: https://pt.wikipedia.org/wiki/Algoritmo
2 Big data é a área do conhecimento que estuda como tratar, analisar e obter informações a partir de conjuntos de dados grandes demais para serem analisados por sistemas tradicionais. Fonte: Wikipédia
3 Uma avaliação de impacto de privacidade, é um processo que ajuda as organizações a identificar e gerenciar os riscos de privacidade decorrentes de novos projetos, iniciativas, sistemas, processos, estratégias, políticas, relações comerciais, etc. Fonte: Wikipédia
4 Privacidade desde a concepção é uma abordagem à Engenharia de Sistemas, a qual leva em conta a privacidade durante todo o processo de construção do software. É um conceito sensível aos valores humanos e todas as suas derivações em todo o processo. Fonte: Wikipédia