Com cerca de 40 pousos e decolagens por hora, o Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, sofreu forte impacto em suas operações no dia 9 de outubro de 2022: uma aeronave de pequeno porte, modelo LearJet, derrapou na pista durante o pouso, em decorrência do estouro dos pneus.
O incidente1 ocorrido por volta das 13h30 de um domingo de intenso movimento no aeroporto hub (que funciona como centro de distribuição de voos) felizmente não deixou vítimas. E foi por pouco que ele não invadiu a Avenida Bandeirantes, situada às margens da pista, o que poderia ter ocasionado um acidente de maiores proporções.
A partir de então, uma série de providências protocolares foram iniciadas, dentre elas a imediata investigação do incidente pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), órgão vinculado ao Comando da Aeronáutica, que inicia a investigação diretamente no local do incidente.
Assim, somente após a liberação do Cenipa, a Infraero, responsável pela administração do Aeroporto de Congonhas, poderia iniciar os procedimentos para retirada da aeronave e liberação da pista. Entretanto, a Infraero se manteve inerte até a retirada da aeronave pelo seu proprietário quase nove horas após o incidente.
Por conta do incidente, o Aeroporto de Congonhas ficou fechado até às 22h18. Ainda, os impactos na malha aérea até sua reorganização se prolongaram por cerca de três dias.
O CEO da Latam, Jerome Cardier, se pronunciou sobre o episódio: “Só em função deste incidente e seus efeitos reacionários, entre ontem e hoje, tivemos mais de 180 voos cancelados, atrapalhando a vida de quase 30 mil pessoas. Tivemos, inclusive, impacto na saída dos voos internacionais de Guarulhos (o trecho em direção a Madri, por exemplo, foi cancelado porque a tripulação não chegou a tempo)”.
Além do impacto, a fala do executivo chamou atenção para os prejuízos e deixou no ar a questão “o que mais deve acontecer em Congonhas para que decidam deixar de operar com aviação de pequeno porte em um aeroporto tão central para toda a malha aérea do país?”
Todos os voos respeitam os chamados slots, intervalo de tempo de pousos e decolagens, coordenados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). A menção “intervalo de tempo” demonstra a dimensão da operação diária de um aeroporto, onde os pousos e decolagens são ordenados em intervalo de minutos.
Assim, a retomada e reorganização de todos os pousos e decolagens foram impactados, tendo como consequência centenas de cancelamentos, atrasos e alterações de voo, prejudicando e frustrando a expectativa de milhares de passageiros.
A aviação civil como atividade empresarial assume deveres e obrigações pelos acontecimentos que prejudiquem o cumprimento dos contratos de prestação de serviços. Em tese, todos que participam da cadeia de fornecimento seriam responsáveis pelo ocorrido, e seriam obrigados a ressarcir os prejuízos no caso de uma condenação judicial em ação de um consumidor
Esse tipo de responsabilidade decorre da Teoria do Risco da Atividade, pela qual todos os agentes que participam da cadeia de fornecimento devem responder por prejuízos causados, e da Teoria da Responsabilidade Objetiva, que reconhece e responsabiliza fornecedores de bens e serviços, independentemente da intenção do agente.
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Contudo, toda regra comporta exceções. Aqui, falaremos sobre a força maior e o caso fortuito previstos – implicitamente na legislação geral, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), e explicitamente na legislação especial, p Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA).
Uma das exclusões de responsabilidade presentes no CBA foi inserida pela Lei 14.034/2020, que incluiu o inciso II do § 1º do artigo 256, eximindo o transportador aéreo na ocorrência de caso fortuito e força maior.2
A mesma lei incluiu também o § 3º ao artigo 256, definindo que caso fortuito ou força maior são “eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis”, tal como a restrição ao pouso ou à decolagem decorrente de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária.3
Há discussão doutrinária sobre o caso fortuito e suas subdivisões (se ele é interno ou externo), bem como a possibilidade do rompimento do nexo de causalidade entre ação e resultado, excluindo a responsabilidade. Para nossa discussão, nos importa apenas focar o senso crítico na previsibilidade e na inevitabilidade dos resultados, elementos que direcionam à resposta correta.
A jurisprudência pacífica reconhece a ocorrência do caso fortuito interno e externo, sendo este último capaz de romper o nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
A previsão de um incidente ou acidente é crível, mas seus efeitos são inevitáveis. Voltando ao incidente de Congonhas, é seguro afirmar que a situação relatada não decorre de eventos naturais, mas sim de ação humana, ainda que previsível, cujas consequências sem sombra de dúvidas eram inevitáveis. Até este ponto nos parece óbvio!
Mas, na prática, o volume de ações judiciais propostas contra companhias aéreas, atrelada à baixa aplicação da legislação especial do Código Brasileiro de Aeronáutica e das alterações trazidas pela lei 14.034/2020, acaba por comprometer a qualidade e a continuidade da aviação comercial.
A crítica se atine à interpretação absoluta do sistema protetivo de consumidor, com apertado espaço para discussão e detalhamento fático, sem que as circunstâncias do caso concreto sejam sopesadas e ponderadas antes de uma decisão, o que fomenta a indústria do dano moral, do que falaremos ao final.
Por óbvio, a aviação civil é uma atividade empresarial e por tal é remunerada, contudo, não é qualquer fato que lhe possa ser imputado pela teoria do risco, vez que a inevitabilidade deve ser analisada individualmente. Assim, é certo que um incidente ou acidente seria previsível, mas por vezes – como na situação discutida – torna-se inevitável reconhecer o caso fortuito externo.
Neste sentido, Rizzato Nunes afirma que “não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação”.
As cinzas e a erupção de um vulcão são previsíveis, mas as consequências inevitáveis. Assim, reconhecer o caso fortuito externo no incidente de Congonhas não fere o sistema protetivo das relações de consumo.
Ademais, nesse tocante, o próprio Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14º, que trata da responsabilidade objetiva (aquela sem necessidade de demonstração de culpa) de prestadores de serviços, reconhece a excludente de responsabilidade do fornecedor, no caso, da companhia aérea, por fato decorrente de culpa exclusiva de terceiro.4
Portanto, sendo caso fortuito previsto no Código Brasileiro de Aeronáutica ou se tratando de culpa exclusiva de terceiro, positivada pelo Código de Defesa do Consumidor, não deveria restar dúvida quanto à isenção de responsabilidade da companhia aérea em razão da impossibilidade de operação ocasionada pelo malfadado incidente do jato no aeroporto de Congonhas.
Reafirmamos que não é a gravidade dos acontecimentos que afasta ou não a responsabilidade, mas sua inevitabilidade. Vejamos os casos de fortes chuvas, que são eventos previsíveis, mas de consequências inevitáveis e que impactam a malha aérea, obrigando companhias a cancelar seus voos.
Estes cancelamentos decorrem de protocolos de segurança e zelo para com a vida dos próprios passageiros. Contudo, permanece a indagação: é razoável que as companhias indenizem os passageiros por cancelamentos que visam sua própria segurança?
A Lei 14.034/2022 também alterou o CBA para inserir dispositivo que prescreve a necessidade da prova da ocorrência de prejuízos e sua extensão para justificar uma indenização por danos.5
Um acórdão da apelação6 reconheceu corretamente a improcedência da demanda e inocorrência dos danos morais, diante das fortes chuvas que impactaram as operações do Aeroporto de Guarulhos.
Portanto, é razoável que uma companhia aérea arque com indenizações, materiais ou morais, decorrentes de um evento previsível, mas de consequências inevitáveis? Por óbvio, não.
1 De acordo com o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), incidente aeronáutico “é toda ocorrência associada à operação de uma aeronave em que haja intenção de realizar um voo, que não chegue a se caracterizar como um acidente, mas que afete ou que possa afetar a segurança da operação”, ao passo que um acidente aeronáutico
“E toda ocorrência relacionada com a operação de uma aeronave no período entre o embarque do passageiro, com a intenção de realizar um voo, até o momento em que todas as pessoas tenham dela desembarcado e, durante o qual, pelo menos uma das situações abaixo ocorra:
- a) Qualquer pessoa sofra lesão grave ou morra em decorrência de sua presença na aeronave, em contato direto com qualquer de suas partes, incluindo aquelas que dela tenham se desprendido, ou submetido à exposição direta do sopro de hélice, rotor ou escapamento de jato, ou às suas consequências.
Exceção é feita quando as lesões resultarem de causas naturais, forem auto ou por terceiros infligidas, ou forem causadas a pessoas que embarcaram clandestinamente e se acomodaram em área que não as destinadas aos passageiros ou aos tripulantes.
- b) A aeronave sofra dano ou falha estrutural que afete adversamente a resistência estrutural, o seu desempenho ou as suas características de voo ou, ainda, se exigir a substituição de grandes componentes ou a realização de grandes reparos no componente afetado. Exceção é feita para falha ou danos limitados ao motor, carenagens, seus acessórios, hélices, pontas de asas, antenas, pneus, freios, ou pequenos amassamentos ou perfurações no revestimento da aeronave.
- c) A aeronave seja considerada desaparecida ou o local onde se encontra seja absolutamente inacessível.
2 Art. 256. O transportador responde pelo dano decorrente: § 1° O transportador não será responsável: II – no caso do inciso II do caput deste artigo, se comprovar que, por motivo de caso fortuito ou de força maior, foi impossível adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano.
3 Art. 256. (…) § 3°Constitui caso fortuito ou força maior, para fins do inciso II do § 1º deste artigo, a ocorrência de 1 (um) ou mais dos seguintes eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis:
I – restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de condições meteorológicas adversas impostas por órgão do sistema de controle do espaço aéreo;
II – restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária;
III – restrições ao voo, ao pouso ou à decolagem decorrentes de determinações da autoridade de aviação civil ou de qualquer outra autoridade ou órgão da Administração Pública, que será responsabilizada;
IV – decretação de pandemia ou publicação de atos de Governo que dela decorram, com vistas a impedir ou a restringir o transporte aéreo ou as atividades aeroportuárias.
4 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (…)
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
5 Art. 251-A. A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.
6 Acórdão 1000860-09.2022.8.26.0003 no TJSP.
ROGÉRIO MARTES – Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela EPD. Especialista em Propriedade Imaterial pela ESA-SP. MBA em Gestão de Tecnologia da Informação pela FGV/SP. Gerente Jurídico da LATAM Airlines Brasil.
JAYME BARBOSA LIMA NETTO – Mestrando em Direito dos Negócios na Fundação Getulio Vargas. MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Advogado e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados