Depois de quatro anos de negociação e mudança de sede da cidade chinesa de Kunming para Montréal, no Canadá, por conta da pandemia, foi alcançado o ambicioso acordo da COP 15 (Conferência da Biodiversidade da ONU) ou Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework, em dezembro de 2022, com quatro objetivos e 23 metas, que podem ser sumarizados pela sua Meta 4:
“Assegurar ações de gestão urgentes, para deter a extinção induzida pelo homem de espécies ameaçadas conhecidas e para a recuperação e conservação de espécies, em particular espécies ameaçadas, para reduzir significativamente o risco de extinção, bem como para manter e restaurar a diversidade genética dentro e entre as populações de espécies nativas, espécies selvagens e domesticadas para manter seu potencial adaptativo…”.
Esse acordo não é juridicamente vinculativo, mas as metas ajudarão a tirar o tema da invisibilidade dentro da pauta global e concretizar avanços, constituindo mais uma frente vigorosa da agenda ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança). Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o financiamento contra a perda da biodiversidade representou apenas 7% dos fundos, sem levar em conta o protagonismo que o tema merece.
Contudo, igualmente às mudanças climáticas, é fundamental preservar a biodiversidade antes que o mundo chegue a um ponto sem volta, com danos irreversíveis às gerações futuras. Para quem duvida de sua importância, mais da metade do PIB global (US$ 44 trilhões) depende atualmente da biodiversidade. Ou seja, o mundo está prestes a sacrificar sua “galinha dos ovos de ouro”.
Basicamente, o capital natural nos garante alimentos, energia e medicamentos. Mas há outros sinalizadores importantes: 75% das plantações dependem de polinização animal, 4 bilhões de pessoas utilizam remédios naturais, ecossistemas marinhos e terrestres absorvem 60% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) ou 5,6 gigatoneladas de carbono por ano, atenuando o efeito estufa e a temperatura planetária.
Nesse sentido, o acordo da COP 15 cristalizou quatro objetivos globais importantes: manter a integridade e a resiliência de todos os ecossistemas, gerenciar e utilizar a biodiversidade de forma sustentável; proteger o conhecimento tradicional associado a recursos genéticos e assegurar meios adequados de financiamento e cooperação tecnológica para implementar uma estrutura de biodiversidade global.
Alguns países já possuem estratégias para proteger e reverter a degradação dos ecossistemas. É o caso do Acordo Verde da União Europeia, que vai incluir a biodiversidade como requisito do seu Regulamento de Divulgação de Finanças Sustentáveis (SFDR), devendo as empresas informarem em seus relatórios os impactos de suas atividades sobre a biodiversidade.
O setor privado também começou a referendar seu apoio. Caroline Le Meau, por exemplo, diretora global de pesquisa ESG da Amundi, considerada a maior gestora de ativos da Europa, disse que o setor financeiro não deve esquecer a biodiversidade na corrida para ser zero líquido:
“Reconhecemos a importância da biodiversidade que constitui a base para a nossa economia. A ciência é clara no sentido de que temos apenas uma década para deter e reverter a perda de biodiversidade. Apoiamos o estabelecimento de uma Estrutura Global de Biodiversidade pós-2020 ambiciosa e transformadora e continuaremos a trabalhar em direção aos nossos próprios compromissos de biodiversidade, conforme descrito no Compromisso de Finanças para a Biodiversidade”.
Mas por que há tanta urgência em proteger a biodiversidade? A questão foi bem explicada por inúmeros estudos e obras, como da jornalista Elizabeth Kolbert, no livro “A sexta extinção”. Com base em exemplos paradigmáticos, a autora explica que o mundo já passou por cinco grandes extinções naturais em massa da biodiversidade ao longo de 500 milhões de anos e agora vivemos a sexta, em ritmo acelerado.
“O homem de Neandertal viveu na Europa por mais de cem mil anos e, durante esse período, o impacto que provocou ao redor não foi maior do que o de qualquer outro grande vertebrado”, diz Kolbert. Ela comenta que a extinção tem forte relação com a velocidade das mudanças: “Quando o mundo muda mais depressa do que as espécies conseguem se adaptar, muitas se extinguem” e esse impacto reverbera.
A autora lembra o ecologista de Stanford Paul Ehrlich: “Ao pressionar outras espécies para a extinção, a humanidade está serrando o galho sobre o qual está sentada”.[1]
O nível de perda da biodiversidade no mundo é de cerca de 25% de plantas e animais ameaçados de extinção.
Esse assolamento constitui um risco para a vida humana e demais espécies, seja no incremento da insegurança alimentar, no comprometimento do solo ou por conta da saúde, tendo como exemplo recente a Covid-19, uma doença zoonótica, como o ebola e a SARS, decorrente da exploração de ecossistemas até então preservados, que acabam aproximando pessoas de patógenos que estão na vida selvagem, tornando as pandemias uma realidade cada dia mais recorrente.
Ao atuar para evitar a perda da biodiversidade em seus ecossistemas, governos e as organizações privadas também ajudam na mitigação e adaptação das mudanças climáticas que, por sua vez, causam perda da biodiversidade. Há duas metas principais em jogo: cessar a perda da biodiversidade até 2030 e recuperar e restaurar até 2050. Trocando em miúdos, temos, por exemplo, de eliminar os resíduos plásticos.
Segundo relatório da ONU, o plástico já constitui 85% dos resíduos que chegam aos oceanos e no futuro próximo teremos 50 kg de plásticos por metro quadrado nas costas marinhas em todos os continentes, causando distúrbios e mortes de grande parte de espécies marinhas com seus detritos, que envenenam, sufocam e roubam a luz solar.
No acordo obtido na COP 15 houve consenso em conservar pelo menos 30% das terras, águas interiores e áreas costeiras e oceanos do mundo, sendo que atualmente esse acordo estava no patamar de 17% (áreas terrestres) e 10% (áreas marinhas).
Se o universo do impacto das mudanças climáticas (objeto da COP 27) já era um desafio amplo para empresas e governos, esse novo compromisso da COP 15 envolve a necessidade de que todas as organizações avaliem e divulguem seus “riscos, dependências e impactos” sobre a biodiversidade nas suas cadeias de valor. Está previsto na Meta 15 do acordo que empresas transnacionais divulguem riscos, monitorem, avaliem e divulguem dependências e impactos sobre a biodiversidade.
Em relação ao ESG, a COP 15 amplia a necessidade de criar um design de arquitetura para novos indicadores e metodologias que possam mensurar os dados das organizações ligados à biodiversidade. Há esforços para criar uma estrutura regulatória, como do Partnership for Biodiversity Accounting Financials que está desenvolvendo métricas para que as empresas divulguem seus dados de investimento sobre a biodiversidade.
Atualmente, a análise de dados em escala é limitada pela descentralização das informações ESG. O processo, por exemplo, de estruturar um relatório de sustentabilidade passa por uma série de etapas manuais, como a identificação e o acesso a relatórios individuais, extração de textos e higienização de bases de dados, antes mesmo que qualquer análise possa ser realizada.
De acordo com um levantamento feito pela BlackRock, ainda que a maioria das empresas S&P reporte métricas ESG, 53% dos entrevistados citaram “má qualidade ou disponibilidade de dados e análises ESG” e outros 33% citaram “má qualidade de relatórios de investimento em sustentabilidade” como as duas maiores barreiras para a adoção de investimentos sustentáveis.
Apesar das dificuldades, fica claro que as empresas têm um papel de liderança. Cada vez mais, a capacidade de uma organização de agregar valor a seus investidores está intrinsecamente ligada aos recursos naturais dos quais ela se vale.
Ninguém sabe ao certo a conta para preservar, promover o uso sustentável da natureza, reduzir a poluição, combater a mudança do clima, deixar de explorar de maneira predatória os recursos pesqueiros, estimular uma agricultura mais saudável e que dê conta de alimentar a população global – alguns dos temas em foco pelo Marco Global da Biodiversidade. Mas o acordo obtido dá um passo à frente.
Além de indicar o caminho da preservação, coloca um valor: serão US$ 200 bilhões em financiamento global da biodiversidade até 2030, para aumentar metas estratégicas de biodiversidade, principalmente marinha. O fundo é formado com dinheiro público, privado e de todas as fontes possíveis, o que é positivo. Mas ainda há muito para decidir sobre quem colocará recursos no fundo, quem acessa e quais são as regras.
O Painel Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos da ONU é categórico ao afirmar que 1 milhão de espécies estão ameaçadas de extinção no planeta em decorrência da ação humana. Os riscos são reais e inúmeros, e por isso mesmo, tornam vitais que as práticas ESG das empresas se engajem no novo marco estabelecido pela COP 15.
Essas demandas sustentáveis corporativas já entraram no radar dos investidores à medida que estão garantindo ativos de mais de € 18 trilhões para o Finance for Biodiversity Pledge. Essa tendência também está delineada no Fórum Econômico Mundial, segundo o qual a questão da biodiversidade exigirá investimentos de cerca de US$ 2,7 trilhões/ano até 2030, bem abaixo dos US$ 10 trilhões em PIB perdidos na pandemia.
Diante da urgência estabelecida pela possível “sexta extinção da biodiversidade”, fica a necessidade de incluir o tema na pauta ESG 2023 e refletir sobre a frase incontestável do ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln: “Eu sou a favor dos direitos animais, bem como dos direitos humanos. Essa é a proposta de um ser humano integral”.
[1] KOLBERT, Elizabeth. “A sexta extinção – Uma história não natural”. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
LORENA CARNEIRO – Sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados, LLM em Direito Societário e Mercados de Capitais pela FGV-RJ e cursando MBA em Gestão de Negócios, Inovação e Empreendedorismo na FIA