Neste artigo, utilizamos o termo mito, não no sentido grego de ser uma narrativa que explica a origem de tempos primordiais e de grande significado, mas como uma história “profana, falsa“, e nem por isso deixamos de nos debruçar na busca da verdade, fundamental quando tratamos de Inteligência Artificial (IA) aplicada à análise preditiva na prestação jurisdicional.
Quando se fala de uso de tecnologias de IA no Judiciário, países como o Brasil são sempre lembrados por nossa cultura de litigância, que gera mais de 60 milhões de processos em tramitação no judiciário, sendo que a IA pode criar uma justiça mais célere e menos custosa para o país, embora ainda não saibamos o real impacto que terá no futuro imediato junto aos tribunais e na vida das pessoas.
O próprio Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução nº 332/2020, voltada ao ” uso de sistemas de IA para apoiar decisões judiciais “, sem esquecer de ressaltar os ” critérios éticos (igualdade, não discriminação, pluralidade, solidariedade, julgamento justo) no preâmbulo e no caput do artigo 7º que devem orientar os sistemas de IA que importem em soluções nessas áreas“.¹
Um dos grandes mitos que envolvem o uso das tecnologia de IA na Justiça é o alcance da justiça preditiva. Na ficção, a ligação entre IA e justiça surge no filme de Spielberg, ” Minority Report“, no qual o uso de uma tecnologia preditiva com interface entre humanos chamados pré-cogs e computadores ajuda a evitar crimes antes que aconteçam, o que ajudou a derrubar o número de assassinatos a zero.
O sistema, contudo, gera dúvida sobre sua assertividade, registrada em um ” minority report“, que tinha os dados destruídos, mas ficava na mente do pré-cóg. Nesse cenário, um agente e “chefe de pré-crime” acaba vendo ele próprio praticando um crime. Na verdade, as pessoas são acusadas com base em algoritmos nem sempre infalíveis.
Diante dessa descoberta, ele passa a ser perseguido pelo sistema para evitar denunciar a falha que detectou. É o que até hoje preocupa o avanço da IA no Judiciário: se sua aplicação na esfera judicial tem um custo para os direitos à privacidade e liberdade dos cidadãos.
Atualmente, o uso da IA no Judiciário tem o peso de ser uma ferramenta de prevenção e previsão para solucionar delitos dentro de um mundo ultraconectado tecnologicamente. O uso vem se expandindo nos laboratórios forenses e testes de DNA, entre outros, trazendo importantes evidências para solução de muitos crimes, até de forma antecipada.
De acordo com o jurista francês Antoine Garapon, ” A justiça preditiva é também uma atividade econômica, representando uma esperança ou mesmo um sonho, porque as transformações em curso são de uma profundidade insuspeita “,
sendo que há quem garanta que a análise preditiva poderá trazer, entre outras vantagens, maior segurança jurídica, que cria um ambiente de negócios e cidadania muito mais estável, emprestando mais transparência às normas e diplomas legais do país, assim como a interpretação das leis não reservarão surpresas para as partes.
O temor está em que possa gerar externalidades negativas, ou seja, quando seu uso impõe um custo a terceiros, uma vez que a IA é programada por humanos e isso pode resultar em erros, até porque muitos bancos de dados utilizados são do setor privado e isso pode levar a comprometer direitos fundamentais nos julgamentos.
Um dos lastros mais eficientes que temos é a Lei de Inteligência Artificial da Comissão Europeia, do ano passado, que determina o respeito do uso da tecnologia artificial, como base em preceitos éticos, democráticos , ligados aos direitos humanos.
O sistema de decisão algorítmica para a Justiça terá de passar pelo crivo dos Legislativos, o que já vem ocorrendo principalmente da União da Europa, que tem enfatizado salvaguardas para uso da IA quando aplicadas ao judiciário, defendendo a supervisão humana como fundamental para prevenir a discriminação. A Europa defende que as tecnologias de IA sejam rastreáveis e transparentes e até devam usar código aberto, sempre que possível.
Ainda estamos vivendo os mitos da IA forte, que pode tudo, mas apenas na ficção científica, quando na verdade vivemos as IA fracas ou moderadas que, a partir de dados, promovem a contínua aprendizagem automática da máquina e atingem um resultado esperado em diferentes atividades humanas, incluindo o Judiciário.
O campo do Direito se transformou em um alvo prioritário para as experiências da tecnologia de IA por alguns motivos, como o resultado esperado ser as probabilidades envolvendo o julgamento individualizado dos juizados com base em leis, jurisprudência e doutrina, utilizando as decisões já proferidas.
O aprendizado da máquina (machine learning) tem se mostrado eficaz no trabalho de interpretar os elementos de um processo judicial. Esse diagnóstico foi feito pela University College of London, que categorizou 79% das decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos. ²
É importante observar que o sentido da lei extrapola os dados estatísticos, embora muitas tecnológicas afirmam ser capazes de identificarem vieses no julgamento de terminados juízes ou de um colegiado de um tribunal, porque muitos outros fenômenos complexos envolvendo questões socioeconômicos e culturais se somam a cada decisão, que interfere no resultado probabilístico.
A tecnologia de IA tem um rigor científico que se distancia do significado do Direito, dos valores e interesses sociais que podem ou não criar um novo eixo, que tem o peso de ser mais rico ou mais pobre na construção da paz social.
Portanto, constitui uma revolução que ainda está em processo e, no momento, pode auxiliar na tomada de decisão judicial, cabendo ao juiz decidir o que quer utilizar dos dados extraídos pelos computadores. Os sistemas de IA ainda se concentram na pesquisa legal, análise de dados e justiça preditiva.
A tentativa de previsão nas atividades humanas e do Direito é tão antiga quanto a humanidade e sempre ajudaram as partes a consolidarem argumentos mais robustos, possibilitando que aquele que tem o papel de julgar tenha melhores elementos.
A análise preditiva não interfere nas decisões judiciais , apenas utiliza as sentenças como matéria-prima para prospectar e lançar uma probabilidade de sucesso de determinada ação, sem interferir na garantia do julgamento justo. Sua interferência nas decisões judiciais, portanto, constituem um mito que vem sendo derrubado.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.