Tsunami da litigância predatória que atinge os tribunais brasileiros prioriza temas já detectados pelo Judiciário
Há quem afirme que de todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, o ODS-16 – paz, Justiça e instituições fortes – é a base sobre a qual devem ser erguidos todos os demais ODS’s. São três eixos importantes, principalmente diante de dois conflitos globais em curso no mundo, entre Rússia e Ucrânia e Israel e Palestina, que podem mexer com a geopolítica, o equilíbrio das instituições e até abalar o pilar da Justiça, reforçando a insustentabilidade mundial.
O ODS-16 possui 12 metas importantes¹. Neste artigo, nosso foco é o tópico voltado à promoção do Estado de Direito e ao acesso universal à Justiça, sendo este um princípio de boa governança pública, porque assegura o espaço institucional de cidadania, no qual não cabe o desconhecimento de direitos, nem o aviltamento desses direitos por quaisquer motivos. Na verdade, ressalta o valor universal da dignidade da pessoa humana, conforme está no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público”. ²
O Estado de Direito e a função social do acesso à Justiça – inclusive por mecanismos de resolução extrajudiciais de conflitos – devem ser garantidos a todas as pessoas em todos os lugares, sem que haja qualquer tipo de exclusão, principalmente dos grupos historicamente discriminados. De acordo com o filósofo português, Boaventura de Sousa Santos, “o sistema judicial não pode resolver todos os problemas causados pelas múltiplas injustiças sociais. Mas tem que assumir a sua quota-parte de responsabilidade na resolução”. ³
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No plano doméstico, temos um fato relativamente novo, que vem atuando na contramão do ODS-16: a litigância predatória, que consiste em ajuizamento de ações em grande volume, com petições padronizadas, contendo teses genéricas e vagas, distribuídas em diferentes Estados; com documentação incompleta, procurações irregulares, declaração de pobreza com assinaturas divergentes dos documentos das partes, cópias de documentos ilegíveis ou não relacionados à causa, comprovantes de endereço de pessoas estranhas à relação processual, ausência de comparecimento a audiências presenciais etc.
A litigância predatória ataca ao mesmo tempo os pilares da Governança e o Social no âmbito da Justiça no âmbito do ESG. O primeiro quando impõe ao Poder Judiciário a excessiva litigância, aumentos dos custos judiciais bancados pelos contribuintes brasileiros e sobrecarga de trabalho aos magistrados e servidores. E ao pilar Social, ao emaranhar o acesso à Justiça àqueles que de fato têm direito à prestação jurisdicional e adiar o tempo razoável da tramitação processual.
No âmbito desse contexto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem se preparando para enfrentar a litigância predatória, dentro da Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2016, que instituiu a Resolução 325/2020, com metas, políticas e gestão do Judiciário. O CNJ dispõe até mesmo de uma Rede de Informações sobre a Litigância Predatória para munir os tribunais sobre essa prática abusiva. A Diretriz Estratégica 7 do CNJ estabelece os protocolos para a Justiça se contrapor à Litigância predatória e alerta que este tipo de fraude: “envolve temas mais abrangentes do que o objeto da citada Recomendação, e ocorre, conforme diversos Tribunais vêm identificando, por meio de ações judiciais de diferentes naturezas, nas quais há o uso abusivo do Poder Judiciário”.4
Em São Paulo, maior Tribunal do país, os dados sobre litigância predatória, levantados no período de 2016 a 2021, pelo Núcleo de Monitoramento de Perfis Demandados da Corregedoria Geral da Justiça (Nupomede) chegam a surpreender: média de 337 mil casos anuais, com prejuízos em torno de R$ 2,7 bilhões para o erário público. Tudo começa com uma movimentação processual atípica, com processos impetrados, muitas vezes, sem conhecimento da parte autora e pulverização de demandas. Já foram detectadas 120 mil ações dos mesmos autores e 6.220 acórdãos do TJSP trazem menções ao estudo do Nupomede e ao problema da litigância predatória.
Um dos casos relatados ao CNJ é do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) e envolve uma empresa que comunicou terem sido distribuídas cerca de 500 ações com pedidos idênticos em outros Estados e que passaram a se repetir na Justiça do DF, com petições similares às anteriores, com o interesse de vantagens pecuniárias contra os demandantes. Os Tribunais têm criado Centros de Inteligência para monitorar essas ações, sem que haja cerceamento do direito de defesa, mas atuando na prevenção de processos fraudulentos. Também fica evidente que a demanda predatória não pode ser confundida com demanda de massa, ou seja, o conceito de passivo judicial volumoso.
O tsunami da litigância predatória que atinge os tribunais brasileiros prioriza alguns temas já detectados pelo Judiciário: serviços de telefonia, bancário, dever de informação, negativação indevida do consumidor, Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos (DPVAT), planos de saúde, empréstimos consignados, serviços aéreos, revisão bancária, dentre outros.
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Para debater a cautela do Juízo diante da suspeita de litigância predatória, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) promoveu audiência pública, no início de outubro, sobre o Tema 1.198 dos recursos repetitivos. No debate, foi apresentada pesquisa realizada pelo Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), que resultou na Nota técnica 1 daquela corte.
Para entender como vem ocorrendo a litigância predatória no Estado, as causas e propor soluções de prevenção e tratamento sistêmico, o TJMS tomou como amostra de análise 300 processos, sendo 80% referentes a empréstimos consignados. De acordo com o estudo, 100% petições iniciais eram genéricas. Outros dados levantados, apontam a dispensa da audiência de conciliação ou quando houve tentativa de solução extrajudicial pela plataforma consumidor.gov.br, isso foi feito de forma abusiva, a partir da inserção de dados falsos das partes (endereço e telefone) no preenchimento do cadastro. Pior: em 25% dos casos, as partes autoras eram analfabetas. A pesquisa ainda levantou o perfil das partes demandantes: maioria composta por idosos, com forte vulnerabilidade financeira, recebendo até um salário mínimo da Previdência e dívidas pendentes.5
Combater a litigância predatória, que manipula petições, informações das partes e sobrecarrega o sistema judicial com litígios fraudulentos, levando a gastos desnecessários e impedindo que a justiça seja sustentável e preste um serviço público a quem realmente precisa, é um desafio nacional à efetivação das metas do ODS-16. Nesse diapasão, seu combate precisa ser ajustado à realidade brasileira, começando pelo amplo conhecimento do problema por todos os operadores do direito, até porque guarda muita similaridade em todos os Estados, onde os Tribunais já começaram o monitoramento do problema para que o ODS-16 possa avançar no Brasil, alinhado aos indicadores ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança), principalmente para fortalecer os pilares de governança e o social da Justiça, sem que haja qualquer limitação ao trabalho da advocacia e ao devido processo legal.
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¹12 Metas do ODS-16
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Reduzir a violência em todos os lugares
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Proteger as crianças do abuso, exploração, tráfico e violência
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Promover o Estado de direito e garantir a igualdade de acesso à justiça
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Combater o crime organizado e o fluxo ilícito financeiro e de armas
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Reduzir substancialmente a corrupção e o suborno
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Desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes
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Garantir uma tomada de decisão ágil, inclusiva e representativa
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Fortalecer a participação na governança global
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Fornecer identidade jurídica universal
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Garantir o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais
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Fortalecer as instituições nacionais para prevenir a violência e combater o terrorismo e o crime
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Promover e fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias
² https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
³ SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça 3. Ed. São Paulo:Cortez, 2011
4https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/metas-e-diretrizes-estrategicas/metas-2023/
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/03/glossario-metas
5 https://www.youtube.com/watch?v=N-HlEaqrbKA
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
JAYME BARBOSA LIMA NETTO – Mestrando em Direito dos Negócios na Fundação Getulio Vargas. MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Advogado e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados