EnglishKoreanPortugueseSpanish
EnglishKoreanPortugueseSpanish

Lei diz o que não precisava ser dito em disputas judiciais

Lei diz o que não precisava ser dito em disputas judiciais

Passado o período crítico do drama vivido pelo Rio Grande do Sul e sua população, já na fase da reconstrução, o futuro ainda preocupa. Uma delas (preocupações) paira sobre as relações entre os serviços turísticos e de entretenimento, levando o poder público a promulgar a Lei 14.917, de 5 de julho de 2024, prevendo basicamente a possibilidade de remarcação de serviços, reservas e eventos adiados, disponibilização de crédito para uso ou abatimento de outros serviços ou reembolso dos valores, caso assim deseje o consumidor.

A nova lei complementa que não haverá incidência de danos morais, multas ou penalidades a serem aplicadas, salvo se os fornecedores de serviços descumprirem as obrigações estabelecidas, pois os eventos climáticos configuram caso fortuito e força maior. Na prática, a dúvida que fica é: apenas eventos naturais de efeitos devastadores são considerados de força maior?

Confesso que, após a leitura detalhada da lei, cabe pensar que a nova legislação acaba por normatizar o óbvio, pois o artigo 18 do CDC prevê praticamente as mesmas hipóteses. A lógica sugere que a ratio legis seja única e exclusivamente o socorro a um estado fortemente impactado em sua economia por um desastre climático natural, que concentra no turismo e no entretenimento parte de sua economia. Contudo, essa é apenas uma das intenções da lei, em nossa opinião.

A nova lei acaba por reafirmar o que a doutrina defende, mas que ainda é colocado na balança, quando estão em jogo os direitos dos consumidores. Nos referimos ao reconhecimento da força maior, capaz de romper o nexo de causalidade e afastar o dever de indenizar. O Código de Defesa do Consumidor silenciou sobre o caso fortuito e a força maior, mas o reconhecimento desses institutos é amplamente aceito e encontra pouca oposição entre juristas.

LEIA MAIS: ​​​​​​​Riscos do consumidor que ignora as revisões obrigatórias de seu automóvel

De forma simplista, reconhecer-se-á o caso fortuito e a força maior suscetível da quebra do nexo entre conduta e resultado, quando o evento for inevitável ou de efeitos impossíveis de serem contidos.

Não intencionamos esmiuçar o conceito de inevitabilidade ou efeitos impossíveis de serem impedidos, até pela razão que, sobre as enchentes e enxurradas causadas pelas fortes chuvas em diversas regiões do RS, não pairam dúvidas sobre essas características. O desastre natural atingiu escalas nunca antes vistas.

Mas chamamos a atenção ao fato de que a edição da lei normatiza o que não precisaria ser dito, mas que ainda gera dúvidas interpretativas quando contrabalanceada com princípios de defesa do consumidor, como os da reparação integral e da responsabilidade objetiva.

A crítica que fazemos refere-se à resistência ao reconhecimento da força maior em disputas judiciais envolvendo quaisquer relações entre consumidores e fornecedores de bens e serviços, não só no setor turístico e entretenimento.

Desincentivo à atividade empresarial

Ao nosso ver, um evento que fuja da esfera de controle de um fornecedor de serviços jamais poderia ter sua responsabilidade atribuída ao próprio, apenas pelo fato que o CDC prevê a responsabilização objetiva. Esse raciocínio lógico alinha-se à previsão do CDC quanto à não responsabilização integral, que difere totalmente da reparabilidade integral quando reconhecida a responsabilidade civil.

A reparabilidade integral prevê que os consumidores sejam ressarcidos integralmente por quaisquer danos, mas não prevê que a obrigação de reparar decorra de qualquer fato, seja este natural ou motivado de ação humana. Caso fornecedores de serviços fossem obrigados a este tipo de reparação, haveria um desincentivo à atividade empresarial, pois empreender pressuporia a assunção de risco integral.

Qual incentivo há para empreender no Brasil, especialmente em um setor que contrata e fornece diariamente serviços de hospedagem, eventos, passeios, dentre outros como é o setor turístico, diante da necessidade da edição de lei para reafirmar o óbvio?

VEJA MAIS: O consumidor, a justiça e as práticas ESG na aviação civil

E se não bastasse tais obviedades, as quais deveriam estar consolidadas há muito tempo, a lei exclui expressamente o não cabimento dos danos morais diante de eventuais cancelamentos ou adiamentos dos contratos de natureza consumerista.

Sobre este ponto, se foi reconhecida a força maior, por que seriam devidos danos morais? A única possibilidade seria o não atendimento dos consumidores, o que também nos parece bastante claro e reafirmado desnecessariamente.

Sobre esse prisma, o reconhecimento precedente da força maior nas relações de consumo, independente da edição desta lei, evitaria a movimentação do Estado, por meio do Poder Legislativo, que poderia concentrar esforços em questões.

No Poder Judiciário — a movimentação estatal, o incontroverso e o volume de processos judiciais, onde muitas controvérsias poderiam ser solucionadas administrativamente, pelo desencorajamento litigioso patrocinado pelo reconhecimento da força maior como cláusula excludente de responsabilidade —, é uma realidade. Este reconhecimento poderia ter ocorrido há muito tempo, sem a necessidade de incansáveis discussões, interposição de recursos às instâncias superiores, incidentes de resolução de demandas, dentre outros caminhos processuais. Moral da história: Precisamos de mais leis, mais processos ou de um pouco de bom senso sobre o óbvio?


é sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestrando em Direito dos Negócios na Fundação Getúlio Varga e MBA em Gestão Empresarial pela FGV.

Post Relacionados