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ESG e due diligence no enfrentamento à escravidão moderna

ESG e due diligence no enfrentamento à escravidão moderna

Entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, a erradicação da escravidão moderna está presente entre as metas estipuladas para serem atingidas nos próximos sete anos, dentro do ODS-8.

As legislações permissivas ou o vácuo de normas e a falta de políticas corporativas com ênfase nos pilares “S” e “G” do ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) ajudam a perpetuar esse abuso que atinge um total estimado de 50 milhões de trabalhadores em todo o mundo, distribuídos em cadeias de suprimentos, sem acesso a direitos fundamentais, estando mais presentes no setor privado (86%), segundo dados da OIT (Organização Mundial do Trabalho).[1]

Diante da constatação de que a autorregulamentação das corporações e as diligências do poder público para evitar este tipo de trabalho forçado não vêm surtindo o efeito esperado, o Conselho de Direitos Humanos da ONU vem, desde 2014, estudando a criação de um instrumento internacional juridicamente vinculativo sobre empresas e direitos humanos, assim como a criação de um Tribunal Internacional de Corporações, um desafio de difícil transposição.

Atualmente, mais da metade do comércio global depende de cadeias de suprimentos corporativos, envolvendo milhares de trabalhadores distribuídos por dezenas de países, sendo de difícil monitoramento quanto à observância das práticas trabalhistas e de direitos humanos.

Recentemente, o Brasil registrou casos impactantes de trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e Goiás, caracterizado por submissão dos trabalhadores à jornada exaustiva, instalações laborais degradantes, restrição de locomoção dos empregados em decorrência de falsas dívidas adquiridas com o contratante, vigilância ostensiva, violência e retenção de documentos e objetos pessoais.

Delitos tipificados no Código Penal brasileiro (artigo 149) que caracterizam a escravidão moderna.

Com a expectativa de mudar o cenário negativo da escravidão moderna, a ONU trabalha também incentivando o fortalecimento das legislações nacionais para coibir a impunidade do trabalho forçado e outras formas de abuso nas relações trabalhistas em novo tratado. 

Na minuta da última versão, a ONU estabeleceu como sendo razoável que as jurisdições internas dos Estados-partes adotem “as medidas necessárias para assegurar que sua legislação interna preveja reparações adequadas, imediatas, eficazes, sensíveis ao gênero e à idade para as vítimas de abusos de direitos humanos no contexto de atividades comerciais, incluindo as de um caráter transnacional.

De acordo com os padrões internacionais aplicáveis ​​para reparações a vítimas de violações de direitos humanos”.[2]

Dentro dessa diretriz, começou a viger desde o dia 1º de janeiro deste ano a nova lei alemã de due diligence da cadeia de suprimentos (Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz –  LkSG)[3], que impõe uma série de obrigações para as empresas e seus fornecedores, sejam diretos ou indiretos. A lei será aplicada a companhias sediadas na Alemanha com mais de 3.000 funcionários ou filiais com igual número de colaboradores. O total de empregados abarcados pela legislação será reduzido para 1.000 em 2024.

As empresas devem monitorar e relatar medidas, inclusive de fornecedores diretos, para identificar, prevenir e mitigar qualquer tipo de trabalho forçado, infantil, discriminação, violação à liberdade de associação, emprego antiético, condições inseguras de trabalho e degradação ambiental. 

As multas podem chegar a 2% do volume de negócio global médio anual das empresas.

A lei alemã segue tendência legislativa de outros países europeus, voltada a aplicar um arcabouço legal à diligência dos direitos humanos dentro da sustentabilidade corporativa. Nesse esforço, muitos países criaram leis específicas contra a escravidão moderna, caso do Reino Unido (UK Modern Slavery Act) e da Noruega (Norway’s Transparency Act).

A lei britânica[4] exige que as empresas publiquem um link com declaração pública, aprovada pelos Conselhos de Administração e executivos sêniores, além de estipular punições severas no caso de condenação pelo crime de escravidão moderna.

A lei norueguesa[5], que entrou em vigor no ano passado, vai além. Tem seu ponto central na transparência, exigindo que as empresas comprovem respeito aos direitos humanos e às condições de trabalho decente. 

Permite, até mesmo, que qualquer pessoa possa solicitar informações sobre os impactos de determinada companhia frente aos direitos humanos, considerada uma inovação sem paralelo em outras regulações.

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Para serem enquadradas na nova lei, as empresas da Noruega devem atender dois entre esses três requisitos: ter pelos menos 50 empregados em tempo integral, um volume de negócios de pelo menos € 6,9 milhões e balanço financeiro que movimente € 3,5 milhões. A lei norueguesa também obriga a publicação anual de uma declaração de direitos humanos e há uma autoridade pública (Norwegian Consumer Authority) para supervisionar a aplicação das normas.

Pioneira, a França editou em 2017 a Lei do Dever de Vigilância, pela qual as companhias devem monitorar suas cadeias produtivas e publicar anualmente o plano de vigilância para indicar possíveis riscos e abusos aos direitos humanos e ambientais. A lei francesa é a apontada como a legislação mais abrangente ao envolver as empresas que operam em território francês (com 5.000 empregados)  ou no exterior (com 10 mil trabalhadores).

No balanço realizado pelo Conselho Superior de Economia francês, foram apontados pontos positivos da regulação, como o espírito programático da lei, no sentido de garantir trabalho decente, salários justos e sustentabilidade. 

A despeito da previsão da penalidade de até € 10 milhões, muitas empresas ainda resistem ao cumprimento da norma e propõem a criação de uma autoridade fiscalizadora, que vem sendo criticada por alguns setores à medida que poderia afrouxar os mecanismos de responsabilidade corporativa.

Antes dos regramentos europeus, foi editada a Lei de Transparência na Cadeia de Suprimentos da Califórnia (California Transparency in Supply Chains Act, 2010), nos Estados Unidos, que exige que as companhias divulguem relatórios detalhando os esforços que vêm empreendendo contra a escravidão moderna e o tráfico humano em suas cadeias de suprimentos. 

Os EUA ainda possuem uma norma voltada para uma região específica, a Lei Uigur de Prevenção ao Trabalho Forçado (UFLPA)[6], que proíbe que bens produzidos na região autônoma de Xinjiang (China), onde o trabalho forçado é tolerado pela autoridades, entrem nos EUA, a não ser que a comprovação de rastreamento da cadeia de suprimentos prove o contrário. Embora a importação dessa região seja pequena, ela produz inúmeras matérias-primas incorporadas a muitos produtos chineses.

Das leis vigentes contra a escravidão moderna fora da União Europeia e dos Estados Unidos, a australiana (Australian Modern Slavery Act)[7], editada em 2018, é considerada uma das mais robustas. É aplicada a empresas privadas e públicas com receita de US$ 100 milhões. 

A norma exige que as companhias analisem suas cadeias de suprimentos e operações globais de forma contínua para identificar riscos de escravidão moderna, que devem estar expressos em registros online e ser submetidos aos órgãos competentes. Estima-se que 15 mil pessoas vivam em condições de trabalho forçado na Austrália.

O ESG e a aplicação das novas leis de due diligence para erradicar a servidão humana no ambiente laboral apontam para a necessidade de adotar boas práticas de governança para gerenciar riscos nas empresas e em suas cadeias de suprimentos por ser uma demanda que deve crescer ainda mais.

A criação de indicadores ESG e medidas legais ajudam a entender melhor a questão dos riscos e as expectativas de melhorar a conformidade dentro das organizações frente à servidão humana. 

A inadequação das empresas diante do compromisso de enfrentar a escravidão moderna pode deixá-las expostas a danos reputacionais, multas do poder público, proibição de participar de concorrências e ter de enfrentar possíveis litígios decorrentes dos trabalhadores abusados.

No Brasil, o reforço à luta contra a escravidão moderna vem de alguns projetos pontuais do Legislativo federal – ainda longe de uma due diligence contra o trabalho forçado – e do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, que criou a Assessoria Especial sobre Empresa e Direitos Humanos.

Voltada a estabelecer uma agenda especial com as empresas no sentido de que, em suas palavras, os direitos humanos não funcionem apenas como uma “barreira sanitária” na relação capital e trabalho, mas possa, dentro das corporações, falar português, sem depender tanto dos tratados internacionais.[8]

No sentido de dar mais lastro à observância aos direitos humanos no mundo do trabalho e de ampliar a responsabilidade das empresas, vale lembrar a última frase dita pelo promotor argentino Julio Strassera, em suas considerações finais no “julgamento imponderável” dos militares argentinos acusados de atrocidades durante a ditadura, no filme Argentina, 1985, por ser uma lição simples e aplicável à chaga causada pela escravidão moderna: “Nunca mais”.

A barbárie não pode se repetir dentro do binômio capital-trabalho. Assim como no filme – em que se visita o passado, por mais doloroso que seja, para projetar um futuro em novas bases –, as relações trabalhistas devem, igualmente, adotar a perspectiva ESG e assumir um novo caminho, deixando claro o compromisso de que o trabalho forçado e a servidão humana nas cadeias corporativas devem ser alvos da devida diligência para que não existam “nunca mais”.


[1] Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_855426/lang–pt/index.htm

[2] Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/HRBodies/HRCouncil/WGTransCorp/Session6/LBI3rdDRAFT.pdf

[3] Disponível em: https://www.gesetze-im-internet.de/lksg/LkSG.pdf

[4] Disponível em: https://modern-slavery-statement-registry.service.gov.uk/

[5] Disponível em: https://www.regjeringen.no/contentassets/c33c3faf340441faa7388331a735f9d9/transparency-act-english-translation.pdf

[6] Disponível em: https://www.cbp.gov/trade/forced-labor/UFLP

[7] Disponível em: https://modernslaveryregister.gov.au/

[8] De acordo com o Senado Federal, o Brasil está vinculado aos seguintes tratados, convenções e diplomas normativos internacionais sobre direitos humanos: Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica); Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher;

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; 

Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas 

Cruéis, Desumanos ou Degradantes; 

Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional;

 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.


YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
SANTAMARIA NOGUEIRA SILVEIRA – Jornalista, gerente de conteúdo da LBCA, doutora pela ECA-USP e mestre pela FFLCH-USP

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