Tão certo como o crédito passou a fazer parte do imaginário comum do brasileiro, sua consequência também passou fazer parte da rotina de milhares de pessoas: o superendividamento.
Desde o início deste século, o crediário das lojas de varejo passou a significar cidadania para a “nova classe média”, que nas décadas passadas tinham sido a carteira assinada (década de 70), o título de eleitor (década de 80) e a nota de Real (década de 90). A estabilização da moeda, o pleno emprego e a facilidade de crédito de tempos atrás, ampliaram o poder de compra não apenas das classes C e D dos brasileiros, mas da população como um todo.
Comprava-se de tudo. Desde equipamentos eletrônicos de última geração até veículos novos e o sonho da casa própria se tornaram uma realidade presente na vida do cidadão brasileiro. Começou com os celulares, as TVs de tela plana, os computadores pessoais, os carros populares, etc.
Porém, tão certo como o crédito passou a fazer parte do imaginário comum do brasileiro, sua consequência também passou fazer parte da rotina de milhares de pessoas: o superendividamento.
Praticamente na mesma proporção que se conseguia o crédito, a população se endividava cada vez mais, seja de uma forma ativa – gastando mais que podia – seja de uma forma passiva, onde fenômenos alheios à vontade do tomador do crédito levam à falta de pagamento.
E, aí, vieram grandes crises políticas e, por fim, a pandemia de covid-19, quando empregos foram perdidos, empresas fechadas, e, o tema que já era sensível, cresceu de forma descomunal, na medida em que o superendividamento passou ser uma realidade muito maior que já era, atingindo o inimaginável número de pessoas em virtude do evento de força maior – imprevisível – e de proporções catastróficas, afetando o mundo inteiro.
Assim, trocando em miúdos, o superendividamento nada mais é que o comprometimento do devedor numa série de compromissos de pagamento, cujo atraso em qualquer das parcelas aumenta a dívida numa proporção muito maior do que a de seus ganhos. Agora, imagine essa definição em tempos de pandemia e o negativo ganho de escala decorrente.
Essa famosa bola de neve, acentuada pela pandemia, faz com que o devedor acabe tomando novos empréstimos (os chamados “papagaios”), com o propósito de pagar parte das dívidas antigas. Havendo uma única inadimplência nos cadastros de maus pagadores, o crédito global do devedor é suspenso em cascada, impedindo de adquirir novos empréstimos ou comprar a prestação. Seus cartões de crédito são cancelados, seu cheque especial é rescindido e não há alternativa para a obtenção de empréstimos a não ser junto aos parentes ou no mercado informal (com agiotas).
A situação pode levar o devedor a ser réu num sem número de processos judiciais, que disputam entre si o patrimônio familiar do devedor, e praticamente eterniza seu nome e CPF com o carimbo de MAU PAGADOR por muito anos – e até por décadas.
O tema é motivo de preocupação em todas as esferas, e as possíveis formas de se evitar ou amenizar o superendividamento vêm sendo discutidas, inclusive, no âmbito legislativo; todavia, sem uma solução mais concreta que não seja, a título sugestivo, a renegociação das dívidas na forma de mutirões.
Vale destaque para o projeto de lei do superendividamento, projeto de lei federal 283 de 2012, posteriormente substituído no ano de 2015 pelo PL 3.515, e cuja discussão fora reavivada pelos juristas justamente em decorrência da pandemia em que vivemos.
Trocando em miúdos, de forma bem resumida – já que o intuito aqui é tratar de medidas já existentes – o projeto de lei em questão visa a redução de litígios e a promoção de segurança jurídica não apenas aos consumidores superendividados, como aos credores – e aqui se destaca que o projeto visa alterações no Código de Defesa do Consumidor – prevendo um plano de pagamento – que poderá ser compulsório – ao devedor de boa-fé, que o permita a negociar em bloco com seus credores, garantindo-lhe ao menos um mínimo para que consiga sobreviver, ao mesmo tempo em que paga suas dívidas, estancando a eternização.
Todavia, retomando ao tema aqui proposto, como evitar, com os instrumentos legais atuais, a eternização do superendividamento?
Existe um prazo concreto para que a pessoa endividada veja uma “luz no fim do túnel”?
Um caminho que sempre existiu ou que existe desde épocas, onde nem se cogitava o tema do superendividamento, mas pouco difundido, é o ajuizamento, pelo superendividado, pessoa física, de uma ação declaratória de insolvência civil.
Esta ação estava revista expressamente no Código de Processo Civil de 1973, com todos os requisitos e procedimentos nos artigos 748 e seguintes, e todos os seus dispositivos foram mantidos expressamente vigentes pelo Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 1.052, até que edição de lei específica venha a ser concluída.
O pedido de declaração de insolvência também pode ser requerido pelo próprio devedor (além do credor quirografário e do inventariante devedor falecido). O único requisito extrínseco é que as dívidas excedam o valor da totalidade de bens do devedor.
Preenchido e comprovado tal requisito, poderá o devedor pessoa física, seu credor quirografário, ou o inventariante do devedor falecido, requerer seja declarada sua insolvência civil, a qualquer tempo, em petição inicial dirigida ao juiz de onde o devedor resida. Além disso, devem ser informados (art. 760 do Código de Processo Civil1):
I – A relação nominal de todos os credores, com a indicação do domicílio de cada um, bem como da importância e da natureza dos respectivos créditos;
II – A individuação de todos os bens, com a estimativa do valor de cada um;
III – O relatório do estado patrimonial, com a exposição das causas que determinaram a insolvência.
Se acolhido o pleito do superendividado, o juiz proferirá uma sentença decretando sua insolvência, a qual terá as seguintes consequências iniciais: (I) o vencimento antecipado de suas dívidas; (II) a arrecadação de todos os seus bens suscetíveis de penhora, quer os atuais, quer os adquiridos no curso do processo e (III) a execução por concurso universal dos seus credores.
Ato contínuo, o juiz responsável (I) nomeará um administrador da massa de bens e procederá com a (II) a decretação de que todas as execuções individuais contra o devedor, inclusive trabalhistas e com exceção das fiscais, sejam remetidas ao juízo da insolvência.
Num primeiro momento já se verifica uma grande vantagem ao superendividado, de ver todas as suas dívidas (vencidas e a vencer) tratadas num único processo, e a = as execuções contra ele, para a cobrança de dívidas, tramitando perante um único Juízo – o da insolvência. E também há uma estabilidade jurídica atrelada ao evento, não apenas para o devedor, como também para os credores, que terão seus direitos de preferência resguardados e o conhecimento sobre todo o patrimônio disponível do devedor.
De outra parte, ajuizando-se a ação declaratória de insolvência civil, com todas as consequências que ela causa na vida do superendividado, é natural que se faça a seguinte pergunta: Se o devedor entregará espontaneamente todos os seus bens à disposição de um Juízo, os quais serão administrados por um terceiro, como então viverá nestas condições?
A resposta é simples, e também prevista na própria legislação de forma expressa, ao lembrar-se que o salário da pessoa é impenhorável, podendo viver normalmente até a extinção de suas obrigações decorrentes da insolvência judicial declarada. Caso não seja um assalariado, pode, inclusive, solicitar que se faça uma reserva mensal dos frutos de seus bens, a título pensão, até que se proceda à liquidação de todos os bens no decorrer do procedimento, conforme preconiza o artigo 7.852 do Código de Processo Civil de 1973, que ainda vige para esse fim, como já antes esclarecido.
Por todo o exposto, o tema em estudo sugere um meio de evitar a eternização do superendividamento através do procedimento judicial apontado, indicando um prazo máximo para que a pessoa endividada seja reabilitada a praticar todos os atos da vida civil e retomar normalmente sua vida, pois a declaração de insolvência civil acarreta na extinção das obrigações do devedor decorrido o prazo de cinco anos, contados à partir do encerramento do processo de insolvência, ficando este obrigado pelo saldo em aberto, após liquidada a massa, somente até a concretização de tal prazo de cinco anos.
Veja-se que não se trata de uma forma de burlar o pagamento aos credores, tanto que a lei expressamente prevê o procedimento, o qual acarreta inclusive na arrecadação de todos os bens do devedor presentes e futuros, respeitado o prazo mencionado; mas sim uma forma de estancar a eternização das dívidas e o consequente, por muitas vezes, fim da vida da pessoa como cidadão.
Desta forma, até que os incessantes debates sobre os superendividamento se convertam em medidas efetivas, as quais evitem a eternização das dívidas e severas restrições aos atos da vida civil do cidadão por tempo indeterminável, as presentes palavras apresentam uma alternativa, de acordo com os mecanismos legais atuais, cujo escopo é evitar, com um prazo bem delineado, a eternização do superendividamento, favorecendo tanto credores, como os próprios devedores.
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1 Art. 760. A petição, dirigida ao juiz da comarca em que o devedor tem o seu domicílio, conterá
2 Art. 785. O devedor, que caiu em estado de insolvência sem culpa sua, pode requerer ao juiz, se a massa o comportar, que Ihe arbitre uma pensão, até a alienação dos bens. Ouvidos os credores, o juiz decidirá.
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