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Direito autoral na era da inteligência artificial: como garantir a proteção?

Direito autoral na era da inteligência artificial: como garantir a proteção?

Assistentes de voz, casas inteligentes e veículos autônomos – a inteligência artificial (IA) permeia diversos aspectos da sociedade contemporânea e, desde o advento de modelos de linguagem artificial, como o Gemini e ChatGPT, sua presença é mais proeminente do que nunca. Apesar do fascínio que a IA desperta, não se pode ignorar os desafios legais que acompanham seu desenvolvimento. Um domínio particularmente complexo é o dos direitos autorais, campo no qual surgem importantes questões diante da produção digital gerada pela IA. Como a legislação de direitos autorais, originalmente concebida para obras analógicas, se adapta e regula a criação digital produzida por sistemas de IA?

Embora as indagações se proliferem, as respostas rareiam. O desenvolvimento e a implementação desses instrumentos tornaram-se imperativos para as empresas, as quais, com justificável discernimento, vislumbram tal avanço como um ponto de inflexão inevitável. Contudo, tal desiderato demanda a instituição de um arcabouço de governança no qual as soluções para tais inúmeras questões sejam abordadas de maneira eficaz.

A realidade inegável é que a IA estabeleceu-se como um fator inescapável da sociedade e da economia e tem um vasto potencial para revolucionar indústrias e a vida cotidiana. No entanto, preocupações persistem em relação aos seus potenciais impactos negativos, especialmente em áreas como IA generativa e grandes modelos de linguagem (LLMs), exemplificados pelo Gemini e ChatGPT. Essas tecnologias levantam questões éticas e legais complexas, especialmente relacionadas à propriedade e direitos de propriedade intelectual.

A determinação da titularidade de conteúdo gerado por inteligência artificial apresenta um desafio substancial. Em um caso paradigmático sobre o assunto, Thaler v. Vidal 1 , o Tribunal de Apelações dos Estados Unidos (United States Court of Appeals for the Federal Circuit) deliberou que a inteligência artificial não pode ser reconhecida como inventora em uma patente, uma vez que os inventores devem ser pessoas naturais. Ademais, empresas como a OpenAI, provedora do ChatGPT, estabelecem em suas políticas que não reivindicam a propriedade do output do programa, ressaltando a distinção entre criadores humanos e de inteligência artificial.

Questões de violação de direitos autorais e plágio complicam ainda mais as questões. A capacidade da IA de produzir conteúdo semelhante à saída humana confunde as linhas de propriedade e originalidade. Disputas legais surgem sobre se obras geradas por IA devem estar sujeitas às mesmas proteções que as criadas por humanos.

No Brasil, o requisito fundamental para a proteção dos direitos autorais é que ela seja considerada uma “obra” nos termos do artigo 7º da Lei nº 9.610/98 2 , elaborada por pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica, conforme definido pelo artigo 11 da mesma lei. Uma  “obra” deve, portanto, ser compreendida como uma criação intelectual de natureza pessoal, sendo que essa criação apenas se configura como “pessoal”; se resultar de atividade humana criativa.

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Isso é especialmente relevante quando se trata dos diversos tipos de resultados produzidos por sistemas de IA: se a IA em si mesma gera o resultado sujeito a avaliação sob os direitos autorais de tal maneira que todas as decisões essenciais de design são tomadas pela IA, tal

resultado geralmente não se enquadra na proteção dos direitos autorais. O resultado é originado pela IA e não por um ser humano, portanto, o critério de “criação intelectual pessoal” não é satisfeito.

O mesmo conceito de obra como resultado de atividade pessoal na concepção e realização da obra é adotado, por exemplo, pela legislação alemã, conforme definido pela Lei sobre Direitos Autorais e Direitos Conexos (Gesetz über Urheberrecht und verwandte Schutzrechte), em sua Seção 2, § 2º 3 :

(1) As obras protegidas de literatura, ciência e arte incluem, em particular:

  1. Trabalhos linguísticos, como trabalhos escritos, discursos e programas de computador;
  2. obras musicais;
  3. obras de pantomima, incluindo obras de arte de dança;
  4. Obras de artes visuais, incluindo obras de arquitetura e artes aplicadas, e projetos para essas obras;
  5. Obras fotográficas, incluindo obras criadas de forma semelhante a obras fotográficas;
  6. Obras cinematográficas, incluindo obras criadas de forma semelhante a obras cinematográficas;
  7. Representações de natureza científica ou técnica, tais como desenhos, plantas, mapas, croquis, tabelas e representações plásticas.

(2) As obras na acepção desta lei são apenas criações intelectuais pessoais. (Grifos não presentes no original. Tradução livre.) 

A complexidade surge quando tanto pessoas naturais quanto inteligência artificial (IA) contribuem para o resultado da produção digital. Nesse contexto, torna-se crucial determinar se a contribuição humana para o design final é suficiente para atribuir autoria do resultado a um ser humano. A questão essencial reside em determinar se a IA é meramente uma ferramenta para implementar decisões de design concebidas pela pessoa natural, ou se controla predominantemente o processo de desenvolvimento e o resultado. 

Se prevalecer o último cenário, então não haveria criação intelectual pessoal envolvida, resultando na ausência de proteção de direitos autorais para a produção resultante. Conclui-se intuitivamente que essas determinações sobre a natureza e a extensão da atuação da IA dependem de uma avaliação técnica detalhada, a ser realizada caso a caso, sendo impraticável, a priori, estabelecer critérios rígidos.

Essa situação jurídica apresenta diversos desafios para a legislação de direitos autorais. Em primeiro lugar, surge a questão de discernir quando um resultado pode ser atribuído a um ser humano e quando à IA. Quais critérios e padrões podem ser empregados para avaliar se a contribuição humana é suficientemente significativa para que o resultado gerado pela IA seja elegível para proteção de direitos autorais? 

O segundo desafio, por outro lado, é eminentemente prático: sem pleno conhecimento do processo exato de criação, como pode ser determinado o grau de contribuição humana na produção em questão e qual parte é atribuível à inteligência artificial (IA)? Ressalta-se que apenas as criações humanas são passíveis de proteção por direitos autorais, o que pode gerar forte incentivo para a não divulgação da parcela gerada pela IA.

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Por fim, mostra-se relevante esclarecer como tratar a produção que não se configura como uma “obra intelectual” nos termos da vigente legislação e, portanto, não goza de proteção autoral. Nesse contexto, é possível que direitos patrimoniais de autor, como os direitos à utilização direta ou indireta de obra (art. 29, VIII), bem como a inclusão em banco de dados (art. 29, VIII, IX), sempre da Lei de Direitos Autorais, possam ser aplicáveis. Contudo, seria mais sensato desenvolver um sistema legal de proteção próprio para estes e outros casos sob a influência das ferramentas de IA.

Além da problemática relacionada à autoria da obra gerada por ou com a contribuição da atuação da inteligência artificial (IA), suscita-se um debate sobre a utilização de obras para o”treinamento” de ferramentas de IA. Para que uma inteligência artificial adquira funcionalidade, é necessário que o algoritmo subjacente seja treinado em seu desempenho, utilizando vastos conjuntos de dados (mineração de texto e dados).

Este processo levanta invariavelmente a questão da legalidade da utilização de conjuntos de dados para o treinamento de aplicações de IA. Em muitos casos, o treinamento exige o uso de informações contidas em fotografias, textos, vídeos e outros conjuntos de dados, os quais podem, por sua vez, estar sujeitos à proteção de direitos autorais, por se enquadrarem na definição legal de obra intelectual. A análise no contexto do treinamento de aplicações de IA pode, portanto, potencialmente infringir os direitos autorais de terceiros.

 Por exemplo, os dados pertinentes devem ser carregados na memória do computador para cada análise automatizada, o que resulta em reproduções e possivelmente em processamento, podendo constituir violação do direito de reprodução parcial ou integral (art. 29, I) de obra intelectual ou utilização indevida de banco de dados (art. 87). Esta questão ainda não foi abordada explicitamente pelo legislador nacional, ao contrário da produção legislativa europeia.

Sob a justificativa de resolver esta problemática, promover inovações técnicas e, ao mesmo tempo, criar um arcabouço jurídico seguro para empresas que desenvolvem aplicações de IA, o legislador europeu introduziu limitações regulatórias em 2019 com a Diretiva DSM (RL (UE) 2019/790 de 17 de abril de 2019) 4, “relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital”.

Por esta regulação regional, os Estados-Membros da União Europeia devem prever uma exceção ou uma limitação aos direitos autorais para as reproduções e as extrações de obras e de outro material protegido legalmente acessíveis para fins de prospecção de textos e dados, desde que o titular dos direitos não tiver reservado o direito de o fazer.

Isso significa que há uma permissão legal (geral) para a coleta de obras protegidas por direitos autorais e seu uso na criação de conjuntos de dados de treinamento. A restrição não se restringe mais apenas a fins de pesquisa, mas também se aplica a fins comerciais.

Valendo-nos mais uma vez do exemplo da legislação alemã, o legislador tedesco emitiu o seguinte balizador legal (Lei sobre Direitos Autorais e Direitos Conexos (Lei de Direitos Autorais), Seção 44b Mineração de Texto e Dados):

“(1) A prospecção de textos e dados é a análise automatizada de obras digitais ou digitalizadas individuais ou múltiplas, a fim de obter informações, especialmente sobre padrões, tendências e correlações.

(2) São permitidas reproduções de obras legalmente acessíveis para mineração de texto e dados. As reproduções deverão ser excluídas quando não forem mais necessárias para a mineração de texto e dados.

(3) As utilizações de acordo com o parágrafo 2, primeira frase, só são permitidas se o titular do direito não tiver reservado o direito de fazê-lo. Uma reserva de utilização para obras acessíveis em linha só é eficaz se estiver em formato legível por máquina.”(Grifos não presentes no original. Tradução livre.) 5

Os resultados oriundos da inteligência artificial acarretam diversos desafios à legislação de direitos autorais. Contudo, nem todos esses desafios são novos. Questões relacionadas à diferenciação entre edição que demanda autorização e uso não relevante para os direitos autorais, assim como a utilização de programas de computador como ferramentas técnicas, já são contempladas pela legislação vigente e podem ser tratadas por meio dos recursos disponíveis.

No contexto da avaliação dos resultados produzidos pela IA em casos individuais, torna-se imprescindível o estabelecimento de critérios apropriados a serem desenvolvidos pela jurisprudência. Havendo previsão legal, como no caso alemão citado acima, alguns desafios podem ser considerados resolvidos, ao menos temporariamente, como é o caso da permissibilidade geral da mineração de texto e dados comerciais, mesmo sem a autorização prévia dos autores envolvidos. 

No entanto, novos desafios também surgem. Especificamente, a questão de como lidar com os resultados que não estão sujeitos à proteção por direitos autorais, bem como determinar a proporção relativa de contribuição humana ou técnica nos resultados gerados pela IA, representa desafios contemporâneos que ainda requerem análise e solução adequadas.

______________

1 https://cafc.uscourts.gov/opinions-orders/21-2347.OPINION.8-5-2022_1988142.pdf

​​2 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm

3 “(1) Zu den geschützten Werken der Literatur, Wissenschaft und Kunst gehören insbesondere:”

(…)

“(2) Werke im Sinne dieses Gesetzes sind nur persönliche geistige Schöpfungen.”

4 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:32019L0790#d1e1119-92-1

5 (1) Veräußert der Urheber das Original des Werkes, so räumt er damit im Zweifel dem Erwerber ein Nutzungsrecht

nicht ein.

(2) Der Eigentümer des Originals eines Werkes der bildenden Künste oder eines Lichtbildwerkes ist berechtigt, das

Werk öffentlich auszustellen, auch wenn es noch nicht veröffentlicht ist, es sei denn, daß der Urheber dies bei der

Veräußerung des Originals ausdrücklich ausgeschlossen hat.

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