O uso da internet aumenta o volume de conteúdos nela existentes e faz com que cada vez mais pessoas tenham acesso às informações ali disponíveis.
Por consequência lógica e, em sendo websites e redes sociais um dos maiores meios de comunicação atualmente, tem-se que a sociedade civil, o Estado e as próprias empresas privadas (administradoras de plataformas digitais[1]) passaram a se preocupar mais com a importância destas ferramentas de acesso para a coletividade.
Assim sendo, como deve o Poder Judiciário, principal agente neste cenário, lidar com volumosos pedidos de remoção de conteúdo?
Antes de tudo é preciso esclarecer que provedores de aplicações de internet (plataformas digitais, redes sociais) não são responsáveis pelo conteúdo compartilhado por usuários/terceiros em suas ferramentas e não possuem a obrigação de realizar o controle do conteúdo que é inserido por eles.
O objetivo é, normalmente, viabilizar um espaço democrático, plural e saudável de interação e troca de informações, no que se incluem manifestações artísticas, jornalísticas, opiniões políticas, depoimentos pessoais, dentre outros, enquanto a preservação desse espaço é feita com base na aceitação, por todos os usuários, das Diretrizes e Políticas estabelecidas em Termos de Uso e de Serviço.
Caso as plataformas digitais sejam alertadas ou verifiquem a presença de conteúdos que estejam em desacordo com as regras estabelecidas por essas “redes sociais”, materiais cibernéticos podem ser removidos, usuários podem ser advertidos ou, em situações mais graves, contas podem ser banidas por conduta inadequada ou compartilhamento de conteúdo impróprio.
Os princípios seguidos pelos provedores de aplicações, apesar de seus contornos transnacionais, levam em consideração, no Brasil, a Constituição Federal de 1988, que foi o verdadeiro marco da redemocratização do país, depois de 21 anos de censura imposta pela ditadura militar.
A hierarquia qualificada e a garantia de direitos fundamentais foram positivadas pelo artigo 5°, conforme se depreende de seus parágrafos que, além de reforçarem a imutabilidade por meio de cláusula pétrea, também contam com aplicabilidade imediata.
A liberdade de expressão é o direito de expressar e divulgar um pensamento, que importa no direito de ser informado, sem sujeição a censuras (BRASIL, 2012, p. 55). Até por isso, a eficácia reforçada dada à ela é resguardada por demais direitos fundamentais, como de liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5º, IV) e de livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (artigo 5º, IX).
Além disso, a liberdade de expressão ainda encontra-se positivada na inviolabilidade de consciência e de crença (artigo 5º, VI), no acesso de toda a sociedade à informação (artigo 5º, XIV), na vedação à censura e na liberdade de imprensa prevista no artigo 220 também da Constituição Federal, uma vez que está diretamente ligada
1) ao “livre mercado de ideias”, permitindo assim que as informações circulem na sociedade;
2) à busca da verdade e ao compartilhamento de conhecimento,
3) ao fortalecimento da democracia diante da possibilidade de manifestação sem qualquer risco de controle prévio ou retaliação, e
4) à autonomia pessoal, considerando que opiniões são formadas a partir do debate público de pontos de vista e convicções, inclusive, diferentes.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em sua função de guardião da Constituição Federal, reforçou em paradigmas a importância do direito fundamental aqui comentado.
Na ADPF n.º 130, em especial, foi reconhecida a necessidade de “preservar-se a prática da liberdade de informação, resguardando-se, inclusive, o exercício do direito de crítica que dela emana, verdadeira ‘garantia institucional da opinião pública” e, ainda, que “os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos.
(…) Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a ‘livre’ e ‘plena’ manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana” [1].
Ou seja, a natureza da liberdade de expressão é preferencial sob outros direitos. Embora não absoluta, assim como a liberdade de imprensa, quando em conflito com outros direitos fundamentais, a lógica constitucional é de que qualquer determinação de censura, mesmo que repressiva, a uma expressão de liberdade de manifestação, merece ser vista com extrema cautela.
No espaço virtual não é diferente. Todavia, há hipóteses em que os direitos fundamentais com proteção constitucional dão lugar aos direitos de personalidade inseridos na esfera privada, também sustentados pelo princípio da dignidade humana.
Direitos da personalidade “são aqueles direitos subjetivos cuja função, relativamente à personalidade, é especial, constituindo o mínimum necessário e imprescindível ao seu conteúdo (… )sem os quais à personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor concreto: direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam o interesse para o indivíduo – o que vale dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal” (DE CUPIS, 1961, p. 17).
Ou seja, tratam-se dos direitos à vida, nome, moral, honra, imagem, vida privada, liberdade e outros, positivados no artigo 5° da Constituição Federal em incisos como VIII, XIII, XVII, bem como considerados pelos artigos 11 a 21 do Código Civil, cuja regulamentação é não exaustiva, nos termos do Enunciado 274[2] da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.
Nessa linha, tal como qualquer conflito que precisa ser dirimido ou ato ilícito que precisa ser de alguma forma condenado, cabe ao Poder Judiciário intervir de modo a ponderar direitos fundamentais, como a liberdade de expressão (que conta, como dito, com posição preferencial no ordenamento jurídico) e direitos de personalidade, como a imagem e a honra.
Para tanto, no que diz respeito a pedidos de remoção, não obstante os dispositivos legais acima mencionados, juízes e desembargadores ainda contam com o previsto Marco Civil da Internet, especialmente nos artigos 3°, I[2], 4°, II[3] e 19, §1°[4].
Ocorre que, guardadas as exceções legais, como violação de marca ou imagens de nudez não consentida, por exemplo, a satisfação do usuário interessado na remoção de determinado conteúdo não deveria estar atrelada a esta pretensão.
Ainda que a remoção de um conteúdo da internet (vídeos, postagens, comentários, entre outros) possa evitar o compartilhamento do mesmo e sua eventual viralização desenfreada, tal medida pode trazer efeitos colaterais mais gravosos à sociedade como um todo.
Isso porque, em adição à restrição de informações não necessariamente repararem ou reduzirem eventual dano, tal medida pode induzir à censura ou à autocensura e à mitigação do debate democrático e difusão da informação (“efeito resfriador” / chilling effect).
Por isso, também, o papel do Poder Judiciário é fundamental para garantir a análise do conteúdo objeto de eventual pedido judicial de remoção e o sopesamento de interesses envolvidos a fim de se evitar a supressão de informações relevantes e, principalmente, de interesse público.
A título de exemplo, relembra-se de dois julgamentos relevantes. No REsp. 1.487.089/SP[3] não houve ordem para remoção de conteúdo, tendo o STJ confirmado a condenação de um famoso humorista ao pagamento de indenização por danos morais, imposta pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em favor de outra artista, seu marido e o bebê que ela gerava na época, diante dos comentários proferidos durante um programa de televisão.
Isto é, houve responsabilização do ofensor sem que houvesse interesse na indisponibilização do conteúdo reputado como ofensivo.
Já no recente julgamento do RE. 1.010.606, o STF editou a Tese de Repercussão Geral 786 e, além de reconhecer que é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, ressaltou que “seria uma restrição excessiva e peremptória às liberdades de expressão e de manifestação de pensamento dos autores e ao direito que todo cidadão tem de se manter informado a respeito de fatos relevantes da história social.
Ademais, tal possibilidade equivaleria a atribuir, de forma absoluta e em abstrato, maior peso aos direitos à imagem e à vida privada, em detrimento da liberdade de expressão, compreensão que não se compatibiliza com a ideia de unidade da Constituição”.
Em resumo, portanto, não há manual ou resposta pronta para a controvérsia “liberdade de expressão x direitos da personalidade”, comumente existente em pedidos de remoção de conteúdo na internet. Até porque não adianta fomentar o livre mercado de ideias se, posteriormente, há risco de se restringir conteúdos.
Fato é que prioriza-se o respeito à liberdade de expressão a fim de se impedir o risco de censura prévia, dando preferência posterior a direitos de personalidade.
“Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”[4].
O que se pode pensar como solução é, sim, a manutenção de conteúdos na Internet com a responsabilização cível ou penal do verdadeiro ofensor e, ainda, no combate de eventuais excessos por meio de mais informações ou respostas.
Permitir a livre circulação de ideias ao invés de se restringir manifestações possibilita ao cidadão (e usuário de redes sociais) a formação de suas convicções pessoais de maneira mais crítica, completa e transparente. Buscar “ouvir todos os lados da história” ou ainda “a verdade” é uma situação que pode ficar — ainda que parcialmente – prejudicada diante da restrição de eventual conteúdo na Internet.
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[1] Plataformas digitais são “sistemas tecnológicos que funcionam como mediadores ativos de interações, comunicações e transações entre indivíduos e organizações operando sobre uma base tecnológica digital conectada, especialmente no âmbito da Internet, provendo serviços calcados nessas conexões, fortemente lastreados na coleta e processamento de dados e marcados por efeitos de rede”. (VALENTE, J. C. L. Tecnologia, informação e poder: das plataformas online aos monopólios digitais. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade de Brasília, Brasília, 2019. p. 170)
[2] Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;
[3] Art. 4º A disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção: (…) II – do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos;
[4] Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
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THAYS BERTONCINI DA SILVA – Advogada especialista em Direito Digital Aplicado e Direito das Plataformas Digitais pela FGV, pós-graduada em Direito Digital pelo ITS-Rio/UERJ e sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).