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Desafio dos prestadores de serviço turístico e a MP 948/20

Desafio dos prestadores de serviço turístico e a MP 948/20

Em decorrência da pandemia de covid-19, os prestadores de serviços de turismo em geral enfrentam desafio que poderia até mesmo comprometer a continuidade de suas atividades: da enxurrada de pedidos de consumidores para cancelamentos de suas viagens, sem multas, e reembolso de valores pagos.

De fato, o consumidor tem esse direito durante o período de pandemia, mas não para todos os casos. A situação demanda bom senso quanto ao período das viagens. O caos gerado pela situação afeta também a economia como um todo – e não apenas os consumidores.

A saúde financeira das empresas prestadoras desses serviços também deve ser considerada em relação a pedidos de consumidores que não sejam razoáveis (viagens marcadas a longo prazo, por exemplo).

A discussão se resume a casos onde já não exista política de reembolso gratuito, normalmente naqueles casos em que o consumidor paga um preço mais em conta, sem a previsão de cancelamento gratuito. Onde já existe a política dos prestadores de serviço de cancelamento gratuito, o consumidor poderá fazer os respectivos cancelamentos, sem qualquer custo ou discussão.

Quanto aos fundamentos legais desses pedidos de cancelamento em massa de viagens, o Código de Defesa do Consumidor não prevê expressamente o evento da chamada força maior; que é o que vivemos diante de uma pandemia imprevisível e que não dependeu de nenhum ato humano. O CDC não faz esse tipo de previsão nem mesmo como forma de socorrer o consumidor diante de cancelamentos, nem em hipóteses de eventual exclusão de responsabilidade por parte dos fornecedores de serviço, pelo mesmo motivo (força maior).

Entretanto, há previsão expressa que cláusulas contratuais do contrato de consumo podem ser alteradas em razões de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; e daqui podemos extrair que é acolhida a chamada teoria da Imprevisão no Estatuto Consumerista, ou seja, fatos supervenientes e imprevistos podem servir de base para alterações de negócios jurídicos no meio do caminho, visando ao seu reequilíbrio.

Atrelado ao reconhecimento da teoria da imprevisão pelo CDC, poderá o consumidor se valer ainda da Política Nacional das Relações de Consumo, ali prevista, a qual tem como um dos objetivos o respeito à sua vida e à sua saúde, além dos seus direitos básicos previstos no mesmo CDC, onde um deles é justamente a proteção da vida e da saúde.

Há também a possibilidade de aplicação subsidiária do art. 607, do Código Civil, este que prevê expressamente a força maior como forma de resolução do contrato de prestação de serviço diante de sua impossibilidade continuação.

Mas até que ponto a alegação de força maior pode ser usada também pelos fornecedores de serviços de turismo ou quaisquer outros, visando até mesmo a sobrevivência de suas atividades, com reequilíbrio das relações com os consumidores, durante esse período de crise mundial em decorrência da pandemia de covid-19?

Na mesma linha, ao se pensar em bom senso, os fornecedores de serviço poderão se valer dos mesmos princípios para manter sua política de cancelamento em relação viagens futuras, quando não se sabe se a vida e saúde dos consumidores ainda estarão em risco.

A teoria da imprevisão acatada pelo CDC, por definição doutrinária, tem como escopo o reequilíbrio das relações jurídicas, e não o favorecimento de uma parte em detrimento da outra. Até mesmo porque a crise que enfrentamos vai muito além da defesa da classe dos consumidores como um todo, mas sim é um problema que afeta a todos os setores da economia em escala, sem falar na questão da saúde que é a mais importante.

Trocando em miúdos, vale a força maior para cancelamentos enquanto haja força maior, não fazendo sentido que um consumidor se beneficie do momento para cancelar sem custos viagens marcadas com datas futuras, quando a pandemia já pode ter se encerrado. Tal conduta afrontaria a chamada boa-fé objetiva, norteadora de qualquer relação jurídica e também prevista expressamente tanto no CDC, quanto no Código Civil.

CLAUDIA LIMA MARQUES1 ensina com precisão impar o que é a boa-fé objetiva:… uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.”

Com efeito, não apenas os fornecedores de produtos ou serviços devem agir com lealdade e respeitando os interesses legítimos dos consumidores nesse período tão complicado: a recíproca também é verdadeira!

Feita essa introdução, cabe então discorrer sobre a recentíssima MP 948, do último 8 de abril de 2020, a qual visa justamente uma tentativa de reequilíbrio nas relações de consumo citadas, regulamentando, além de cancelamento de eventos culturais, justamente o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos do setor de turismo, em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-10).

Prevaleceu o bom senso na tentativa do reequilíbrio destas relações em período de força maior expressamente reconhecida na MP, prescrevendo que em casos de cancelamento dos serviços os fornecedores não serão obrigados a reembolsar os valores pagos, desde que assegurem: (i) a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados; (ii) a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços (…) ou (iii) outro acordo a ser formalizado com o consumidor.

Por sua vez, não obstante a não obrigatoriedade de reembolso se asseguradas as hipóteses acima, os consumidores não poderão ser cobrados por custos adicionais, taxas ou multas, desde que as solicitações sejam feitas em até 90 dias da data da entrada em vigor da MP.

Caso a opção seja pelo crédito para compras futuras, a utilização pelo consumidor poderá ser feita no prazo de 12 meses contado do encerramento do estado de calamidade, encerramento este previsto no respectivo decreto legislativo 6 de 2020 para 31 de dezembro de 2020.

Não sendo possível se adotar as alternativas listadas, somente aí é que o fornecedor de serviços deverá restituir o valor pago pelo consumidor, monetariamente atualizado pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), no prazo de 12 meses a contar do encerramento do Estado de Calamidade, ou seja, como dito acima, a partir de 31 de dezembro de 2020, o que já permite um grande folego ao caixa das empresas, buscando-se um provável reequilíbrio.

Outro relevante ponto da MP em debate é que, além de reconhecer expressamente a força maior –  minando a liberdade prejudicial de interpretações sobre o evento – também de forma expressa aponta a não caracterização de danos morais e nem aplicação de multas por infração às normas de defesa do consumidor em virtude dos cancelamentos; evitando assim oportunistas “indústrias de danos morais e multas” se aproveitando do período de calamidade: mais um relevante item visando a um reequilíbrio das relações, e de importante cunho econômico para evitar um caos financeiro e quebradeira.

Não há como se medir o valor da vida e da saúde, mas, por outro lado, a histeria de cancelamentos de viagens futuras, ou qualquer outro tipo de serviço e produtos, sem a certeza da manutenção da força maior quando da sua efetivação, poderia também gerar um caos econômico mundial sem precedentes, que inclui desabastecimento, falta de empregos e quebradeira geral. É algo a se levar em consideração para o reequilíbrio das relações de consumo, daí a importância do debate sobre a medida provisória!

Conclui-se então, por qualquer prisma que se analise a crise em que vivemos, somente a união de todos, em ambos os polos da relação de consumo, pautando-se sempre pela boa fé objetiva; é que se poderá chegar em soluções como as acima apontadas para o verdadeiro reequilíbrio das relações de consumo, a ponto de satisfazer os anseios dos consumidores, ao mesmo tempo em que não se inviabilize as atividades empresariais do setor.

1 MARQUES, Cláudia Lima. Os contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3 ed. 3 tiragem. São Paulo: RT, p , p. 12., grifado e negritado

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