A escassez de insumos e matéria-prima desde o início da pandemia vem afetando o consumidor, que encaminha seu veículo para reparos e não há peças disponíveis no mercado. O artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor prevê prazo de 30 dias para que os fornecedores realizem o reparo no automóvel, porém é preciso analisar esse artigo de forma cautelosa, porque nem sempre ele poderá ser aplicado ao caso concreto.
Se o veículo foi encaminhado para reparo em razão de um vício de fabricação, a fabricante terá o prazo de 30 dias para realizar a intervenção necessária no automóvel, sob pena de incidir nas hipóteses previstas nos incisos do referido artigo, quais sejam: substituição do produto, restituição do valor pago ou abatimento proporcional do preço.
Uma outra situação é o veículo ter sido encaminhado para reparo, após, por exemplo, uma colisão, situação na qual não há a aplicação do prazo previsto no Artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor, haja vista não estarmos diante de vício de fabricação, devendo ser aplicado o Artigo 32 do referido Diploma Legal.
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O Artigo 32 do Código de Defesa do Consumidor, prevê “Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto. Parágrafo único. Cessadas a produção ou importação, a oferta deverá ser mantida por período razoável de tempo, na forma da lei”.
Esse artigo é abrangente quanto ao prazo de reparo em caso de ausência de peça de reposição, inclusive, para casos em que já houver a cessação da fabricação daquele automóvel, prevendo que a peça deverá ser fornecida por um “período razoável de tempo”. Como há essa “lacuna” na Lei, a jurisprudência vem no sentido de que deverá coincidir com a vida útil do bem, conforme abaixo:
“BEM MÓVEL — Veículo — Ação de reparação de danos — Demanda do consumidor em face da oficina autorizada — Demora no conserto do bem em razão da falta de peças no mercado — Automóvel adquirido há nove anos — Não disponibilização de peças de reposição por período razoável — Período que deve coincidir coma vida útil do bem, de quinze anos, de acordo com a Instrução Normativa nº 2/2014 do STJ
— Aplicação do artigo 32 do Código de Defesa do Consumidor — Dano moral configurado – Indenização mantida. Apelação não provida.
(TJ-SP – AC: 10002012820188260233 SP 1000201-28.2018.8.26.0233, Relator: Sá Moreira de Oliveira, Data de Julgamento: 17/02/2020, 33ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/02/2020)”.
Entretanto, trata-se de uma situação atípica, em que houve todo um efeito “cascata“, que acabou por prejudicar as montadoras de automóveis após a Pandemia da Covid-19. Ora, se o maior fornecedor de magnésio e matéria-prima do mundo está em crise, que é a China, podemos ter problemas quanto ao fornecimento de peças.
Não estamos diante de uma situação opcional em que as montadoras decidem se fornecerão ou não a peça, longe disso, no cenário atual, as montadoras acabam sendo tão prejudicadas quanto o consumidor, pois dependem de terceiro para esse fornecimento.
Assim, é possível notar que essa responsabilidade não deverá ser imputada à fabricante, nos casos que envolvam sinistro, pois não depende só dela esse fornecimento de peças, devendo ser aplicada a excludente prevista no Artigo 393 do Código Civil, qual seja:
O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Nas palavras do professor Hamid Charaf Bdine Jr: “Nas hipóteses de força maior ou caso fortuito, desaparece o nexo de causalidade entre no inadimplemento e o dano, de modo que não haverá obrigação de indenizar”. Prossegue destacando que: “Considera-se caso fortuito ou força maior o fato necessário, cujos efeitos eram imprevisíveis ou inevitáveis” [1].
Aplicando o acima disposto ao Código de Defesa do Consumidor, estaremos diante da excludente de responsabilidade civil prevista no Artigo 12, parágrafo 3º, inciso III [2].
A notável Professora Claudia Lima Marques destaca que a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro exonera dos fornecedores, mesmo diante da hipótese de defeito no produto, pois não há nexo causal entre o defeito e o evento danoso[3].
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Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já se posicionou:
“Relação de consumo. Reparo em veículo. Prazo para entrega não cumprido. Serviço insatisfatório. Indisponibilidade do uso do veículo. Requerida atribui o atraso na entrega do veículo à pandemia Covid-19. Preliminares afastadas. Ausência de prova de que o serviço seria realizado em prazo menor. Inexistência de vicio do serviço ou produto. Danos decorrentes de acidente de grande monta. Razoabilidade do prazo de conserto.
Ausência de peças decorrentes do reflexo da pandemia Covid-19. Ação julgada improcedente. Recurso do autor, reiterando teses da inicial. Recurso provido. (TJ-SP – RI: 10124047420218260602 SP 1012404-74.2021.8.26.0602, relator: Cassio Pereira Brisola, Data de Julgamento: 29/04/2022, 5ª Turma, Data de Publicação: 29/04/2022)”.
Neste caminho, importante que o Judiciário, ao analisar o caso concreto, pondere que, desde 2020, a indústria automobilística vem enfrentando uma situação atípica e imprevisível que perdura por mais tempo do que se esperava, implicando em grandes restrições nas atividades do setor, que acabam por prejudicar tanto a linha de produção, como o reabastecimento de peças, causando atrasos incomuns.
[1] Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei nº 10.406, de 10.01.2022/ coordenador Cezar Peluo. – 10.ed.rev. e atual – Barueri, SP: Manole, 2016.
[2] Artigo 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
- 3º O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:
III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros.
[3] Comentários ao Código de Defesa do Consumidor/Claudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 5.ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
Marina Spagnolo Iliadis é advogada e sócia do Lee, Brock, Camargo Advogados, especialista em Direito do Consumidor, pós-graduada em Contratos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e possui curso de extensão em Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Gabriela Cardoso Macedo é advogada do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).