“Eu preciso respirar”. Essa foi a última frase dita há dois anos por George Floyd , enquanto sufocava sob o peso do joelho de um policial sobre seu pescoço e que virou símbolo da luta contra a injustiça e a violência policial impostas aos negros nos Estados Unidos. A morte de Floyd convulsionou a América numa sequência de protestos até a condenação do policial envolvido no episódio a uma sentença de 22 anos de prisão.
No Brasil, Genivaldo de Jesus Santos deve ter dito a mesma frase dentro de uma viatura policial, enquanto lutava
pela vida em uma abordagem da Polícia Rodoviária Federal na BR -101 ( Umbaúba- SE) no dia 25 de maio, data
da morte de Floyd. Genivaldo era um homem preto, pobre e com histórico de esquizofrenia, que foi detido por pilotar uma moto sem capacete e acabou morto com requintes de tortura e crueldade.
Algemado e com os pés amarados, foi colocado no compartimento de presos (porta-malas) da viatura da PRF, “por resistir à abordagem”. Indefeso, ele também não conseguiu respirar, porque os policiais jogaram uma bomba de gás lacrimogêneo e fecharam a porta traseira do veículo. Somente ficaram visíveis as pernas da vítima, sinalizando sua agonia e sofrimento. E se Genivaldo fosse branco, o tratamento teria sido diferente?
Em uma nota pública inicial, a Polícia Rodoviária Federal não lamentava, nem reconhecia a prática de tortura e
excesso de força policial à que foi submetido Genivaldo. Era lacônica e chamava atenção para o uso de recursos
“não letais”.
A mudança de posicionamento veio ao longo dos dias com as repercussões negativas e manifestação do escritório de Direitos Humanos da ONU, cobrando das autoridades nacionais uma apuração rigorosa e responsabilização dos culpados.
Não é à toa que a cada 4,5 anos, o Brasil deve responder ao Alto Comissariado da ONU dos Direitos Humanos pelo descumprimento ou retrocessos envolvendo, principalmente, questões étnicoraciais, de gênero e de violência policial. Todos os Estados-partes da ONU devem cumprir os compromissos voltados aos direitos humanos estabelecidos em acordos internacionais, dos quais o país seja signatário.
Esse tipo de conduta ilícita das forças de segurança traz à tona o desconhecimento dos agentes sobre as premissas
dos direitos humanos, matéria que foi lentamente suprimida das grades dos cursos de formação.
Isso vem criando um círculo macabro, mais um “porão”, onde o Estado confunde parte da população que, já cansada da violência combatida com mais violência, procura na figura das vítimas justificativas para o ato de brutalidade
praticado pelos agentes que atuam em nome das forças de segurança pública.
Mitigar direitos básicos em nome dessa suposta “segurança”, é uma estratégia muito mais simples para o gestor público do que realmente combater a criminalidade com inteligência e eficiência.
O delito de Genivaldo deveria ter resultado em multa e pontos em sua Carteira Nacional de Habilitação. Mas, o
laudo do Instituto Médico Legal não deixa dúvidas sobre sua “sentença”: Genivaldo morreu por asfixia mecânica e
insuficiência respiratória, causada pela bomba de gás lacrimogênio jogada no porta-malas da viatura, que a
imprensa internacional comparou a uma “câmera de gás”, uma prática nazista de extermínio utilizada,
especialmente, contra o povo judeu.
Foram horrores como esse, praticados durante a 2ª Grande Guerra, que levaram à elaboração da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos para assegurar o mínimo de direitos aos indivíduos, um marco civilizatório a que todos devem ter acesso, independentemente de sua etnia ou outra marcação social.
Sergipe está entre os Estados brasileiros com maior taxa de letalidade policial no país, segundo o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, juntamente com o Amapá, Bahia, Pará, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro,
que lidera o ranking nacional de chacinas.
Em apenas um ano, o governador fluminense Cláudio Castro conseguiu registrar 40 chacinas (quando há mais de três óbitos) e 183 mortos. A última operação policial em comunidades da região norte do Rio, no dia 24 de maio, resultou em 23 mortos, considerada uma das mais letais da história do Estado.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública registrou que os índices de letalidade policial vêm crescendo em todas
as regiões do país. O emprego de métodos violentos e abusivos das forças policiais no Brasil é histórico e encarna
o monopólio da violência do Estado, especialmente contra a população preta.
A exemplo do que aconteceu nos EUA, depois da morte de Floyd, o Brasil também precisa colocar um freio na brutalidade policial, com adoção de novos protocolos e ajustamento de conduta quanto ao uso de força excessiva contra a população, especialmente voltados aos estratos mais pobres e periféricos.
Inúmeros estudos apontam a presença do viés racial na abordagem e identificação dos suspeitos por parte das forças policiais; tanto que em 2020, a polícia matou mais de 6 mil pessoas em confrontos, sendo que 80% delas eram pretas.
Na tese “Expectativas autoritárias: apoio ao uso da força excessiva pela polícia”, defendida na USP em 2020,
Ariadne Lima Natal explica que:
“No Brasil, nunca foi necessário institucionalizar um regime de apartheid legal para consolidar a segregação racial da população negra ‘libertada’ após o final da escravidão. Isso porque vigora no país uma poderosa estrutura que combina a violência com discriminação econômica, social e racial que cumpri informalmente esse papel”, sendo que os brancos são mais tolerantes à brutalidade policial por terem menores chances de se tornarem vítimas da polícia.
As mortes de George Floyd e Genivaldo de Jesus Santos estão ligadas não apenas pelas datas coincidentes, mas
por uma demanda da população dos dois países por mudanças nas políticas de procedimentos de abordagem das
polícias, pelo fim do racismo policial e de todos os tipos de ‘porões’ na estrutura do Estado, que escondem e
assustam.
Dados de 2019, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, permitem uma comparação: enquanto nos Estados Unidos, a Polícia matou 23% de pessoas negras; no Brasil elas totalizaram mais do que o triplo.
Os gritos de George Floyd foram ouvidos para além das fronteiras norte-americanas, levados por movimentos como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam); e os gritos de Genivaldo também irão ecoar , indicando que os pretos e pretas do Brasil também querem ter o direito de respirar e de viver em um país que adote o desafio de ser
antirracista.
Como expressam os versos de Abdias Nascimento (Olhando no Espelho): “Para a infância negra/construiremos um mundo diferente/nutrido ao axé de Exu/ao amor infinito de Oxum/à compaixão de Obatalá/à espada justiceira de Ogum.”
*Anderson dos Santos Araújo e Gláucia Arruda são advogados e sócios do Lee, Brock, Camargo Advogados e membros do Subcomitê Afro do escritório
*Santamaria N. Silveira é jornalista, doutora em Comunicação Social pela USP, gerente de
conteúdo e presidente do Subcomitê Afro da LBCA