Neste ano, a Alemanha desativará suas últimas usinas nucleares e encerrará a era nuclear, dando início a um desafio nunca antes tentado: dobrar a energia de fontes renováveis em tempo recorde. Nesse sentido, o país anunciou o investimento de 34 milhões de euros para projetos de hidrogênio verde (H2V) no Brasil.[1]
Essa é uma das frentes alemãs para alcançar a neutralidade na emissão de carbono até 2050, sendo que o pacote global de investimentos neste novo combustível chegará a 9 bilhões de euros para produção, armazenamento e transporte. Essa decisão tem importância crescente diante do alerta recente da ocorrência de ondas de calor, sem precedentes, nos dois pólos da terra, que pode levar a um colapso climático.[2]
Outro dado preocupante vem se somar a esse: o avanço da guerra na Ucrânia, que torna ainda mais urgente superar a dependência dos países da União Europeia dos combustíveis fósseis, principalmente do gás russo.
Há um movimento de mais de 30 países, puxados pela Alemanha, voltado ao desenvolvimento e uso em larga escala do hidrogênio verde até 2030, o que tornaria factível a transição energética para zerar as emissões líquidas de carbono ou alcançar a neutralidade climática até metade deste século, como pactuado no Acordo de Paris. Somente os Estados Unidos dispõem de US$ 9,5 bilhões em recursos para desenvolver o hidrogênio como uma fonte de energia limpa.
O hidrogênio é um elemento químico com capacidade de armazenar energia. É o combustível utilizado nos foguetes espaciais e já foi usado nos dirigíveis alemães, no passado, como o famoso Hindenburg, que se envolveu em trágico incêndio, decorrente de vazamento de gás.
Antes do hidrogênio verde, muitas projeções colocavam o gás natural (GN) como a energia de transição para uma economia descarbonizada, por ser mais limpo que o carvão e mais barato que o petróleo, conseguindo gerar energia controlável, sem flutuações. Um dos pontos de resistência ao uso do gás como energia de transição decorre do fato de emitir metano (CH4), um dos principais gases responsáveis pelo efeito estufa, sendo mais danoso que o dióxido de carbono (CO2) ao meio ambiente.
Contudo, países como a China já elegeram o gás natural como sua energia de transição, porque está disponível, tem custo competitivo, garantindo segurança energética. O gás é mais competitivo nos mercados onde existe em abundância e tem custo baixo, como Rússia e Estados Unidos.
Em sentido contrário, a Alemanha e a União Europeia elegeram o hidrogênio verde como a nova energia da transição, a curto prazo, por ser uma energia disruptiva, adjetivo que etimologicamente vem do latim “disruptus” e indica a qualidade de romper, alterar, sair do curso normal. Quando se trata de tecnologia, se refere a uma inovação que supera aquela que está vigente, vai além.
O hidrogênio somente será considerado verde se for produzido a partir de fontes de energia limpa, como a solar e a eólica, abrindo uma nova janela de oportunidades para as empresas brasileiras que se destacam na produção de energia renovável, especialmente na Bahia, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte, com previsão de plantas instaladas a partir do próximo ano.
O Brasil, com uma matriz energética composta por quase 50% de energias renováveis e potencial para gerar energia eólica e solar o ano todo, surge como mercado ideal para o desenvolvimento do hidrogênio verde. O uso deste combustível é amplo, pode substituir o gás e o diesel nos transportes, utilizando células de combustível, além do uso intensivo na indústria e nos domicílios.Os investimentos (públicos e privados) para desenvolver a infraestrutura necessária para gerar o hidrogênio verde serão de US$ 5 trilhões, na avaliação do Goldman Sachs.[3] É o combustível dos sonhos de um planeta que está entrando em um caminho sem volta na transição para a descarbonização.
O tema do hidrogênio verde já entrou na pauta de prioridades do Conselho Nacional de Política Energética, que aprovou as diretrizes do Programa Nacional de Hidrogênio (PNH2)[4], baseado em seis eixos principais: fortalecimento das bases científico-tecnológicas, a capacitação de recursos humanos, o planejamento energético, o arcabouço legal e regulatório-normativo, a abertura e crescimento do mercado e competitividade e a cooperação internacional.
Nessa perspectiva de uma revolução industrial com uma nova fonte de energia descarbonizada, as demandas ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) devem ter papel importante para impulsionar o hidrogênio verde e avançam algumas medidas, como a regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), autorizando o funcionamento de usinas híbridas (solar e eólica), que tornam as energias limpas mais competitivas.
De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), de janeiro de 2021 a janeiro de 2022 o Brasil teve um aumento recorde na geração da energia por fonte solar e eólica, atingindo 23.664 MW de armazenamento instalado dessas fontes renováveis. Ambas representam 10,9% da matriz elétrica brasileira.[5]
O hidrogênio verde é obtido pelo processo de eletrólise da água, no qual uma corrente de energia passa pela molécula de água, que é quebrada em moléculas de oxigênio e hidrogênio, gerando dois gases. A indústria faz uso intensivo do hidrogênio cinza derivado do gás natural, sendo que durante sua extração, libera dióxido de carbono, que vai para a atmosfera, na proporção de uma parte de hidrogênio para nove de CO2, resultando em prejuízo climático.
Mas esse tipo de hidrogênio é usado maciçamente em refinarias e fábricas. O hidrogênio azul também deixa um subproduto de dióxido de carbono e metano, sendo que parte dessa produção é capturada, não sendo liberada na atmosfera, por isso é reconhecido como de baixa emissão. Temos ainda o hidrogênio rosa, produzido a partir da energia nuclear; o preto, por gaseificação do carvão mineral; e outros tipos de hidrogênios extraídos de diferentes fontes.
A transição energética (geração, consumo e reaproveitamento) para uma economia de baixo carbono já está em curso na cadeia de produtos e serviços de grande parte dos países. É um desafio para a comunidade internacional promover a redução de energias fósseis, aumentar as fontes de energias limpas e reduzir impactos que possam evitar mudanças climáticas severas, geradas pelos GEE (Gases de Efeito Estufa) em um ritmo mais lento até 2030 e acelerado até 2050 para cumprir as metas do Acordo de Paris.
Em termos energéticos, o Brasil lidera o processo de transição para o uso de energias renováveis – eólica, solar, biomassa –, dentro do bloco dos Brics (composto ainda por Rússia, Índia, China e África do Sul), segundo o Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada (Ipea)[6],tendo alcançado a meta prevista em sua contribuição para o acordo do clima de 45%.
Também houve queda do uso de lenha e carvão vegetal no Brasil e o país ainda apresentou um pacto energético sobre o hidrogênio para acelerar o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU em relação ao ODS-7 (energia limpa).
O hidrogênio verde deve se consolidar, portanto, como a energia de transição energética ideal para uma economia que busca ser zero carbono. Esse combustível torna-se fundamental para resolver o ponto fraco das fontes das energias renováveis, como eólica e solar: a intermitência. Isto é, estão disponíveis enquanto o vento sopra e o sol brilha, portanto, dependem de condições naturais.
Isso gera perturbações na rede do sistema elétrico, que causam variabilidade. O estoque desse tipo de energia limpa ainda tem um custo alto, mas a tecnologia vem evoluindo com rapidez. Os estudos apontam que tendem a se tornar uma realidade à medida que evoluírem os projetos sobre armazenamento gravitacional de energia, colocando um ponto final nos memes brasileiros sobre a possibilidade de “estocar vento”.
Os movimentos precisos da Alemanha no sentido de viabilizar o hidrogênio verde demonstram que não é apenas o setor privado que se move culturalmente para o viés ESG – até porque há custos sociais e de governança associados ao impacto ambiental das empresas – mas o Poder Público também tem feito sua parte, porque a sustentabilidade, a integridade da gestão e o compromisso social preocupam igualmente os stakeholders das empresas e os cidadãos.
O Programa de Ação Climática alemão de 2030 definiu claramente as iniciativas para atingir a meta de carbono zero, tendo como estratégia promover o direcionamento dos investimentos governamentais para áreas de investimento sustentável.
Para evitar os efeitos das mudanças climáticas e ter uma transição para uma economia descarbonizada, o hidrogênio verde surge como solução viável.
Além do uso intensivo na indústria, principalmente petroquímica, siderurgia e de produção de amônia, demonstra grande versatilidade e poderá ser usado para a descarbonização de outros setores, como aeronáutico e marítimo, sendo uma opção ao querosene de aviação (QAV-1) e ao alto índice de emissão de GEE do transporte marítimo, que segundo o International Transport Forum emite 3% do GEE global e 27% das emissões de todo o transporte de carga do mundo, representando 873 milhões de toneladas de CO2/ano.[7]
Por tudo isso, a previsibilidade de um futuro para a expansão do hidrogênio verde como o combustível da transição energética mundial cabe dentro do aforismo do poeta Carlos Drummond de Andrade: “há muitas razões para duvidar e uma só para crer”.[8] E essa terá de nos bastar.
[1] Disponível em https://epbr.com.br/alemanha-anuncia-e-34-milhoes-para-desenvolver-mercado-de-hidrogenio-verde-no-brasil/
[2] Disponível em https://www.theguardian.com/environment/2022/mar/20/heatwaves
[3] Disponível em https://www.goldmansachs.com/insights/pages/from-briefings-17-february-2022.html
[5] Disponível em http://www.ons.org.br/paginas/resultados-da-operacao/historico-da-operacao/dados-de-gera%C3%A7%C3%A3o-e%C3%B3lica-e-solar
[6] Estudo do Ipea: Transição Energética e Potencial de Cooperação nos Brics em Energias Renováveis e Gás Natural’.
[7] Disponível em https://www.oecd-ilibrary.org/transport/itf-transport-outlook-2019_transp_outlook-en-2019-en
[8] O Avesso das Coisas (Aforismos). Rio de Janeiro: Record, 1990.
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de Pós-Graduação em Direito.
ANDRESSA MORAIS CAPASSI SANTOS – Advogada, sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados e pós-graduada em Direito Contratual e Imobiliário
SANTAMARIA NOGUEIRA SILVEIRA – Jornalista, gerente de conteúdo da LBCA e Doutora em Comunicação Social pela USP.