Os contratos inteligentes (smart contracts) surgiram como uma inovação impulsionada pelo crescimento da tecnologia blockchain, que permite a criação de contratos digitais autoexecutáveis. O conceito foi inicialmente introduzido na década de 1990, de maneira teórica-experimental, em um modelo que previa a possibilidade de criar contratos cuja execução pudesse ser garantida sem intermediários, por meio de códigos de programação.
A tecnologia blockchain, base dos contratos inteligentes, é uma estrutura descentralizada que armazena registros imutáveis e públicos. Cada bloco da rede contém uma lista de transações verificadas, protegidas por criptografia, visíveis para todos os participantes da rede. Esta tecnologia, atuando como uma rede de dados de registros imutáveis, oferece a base para que os contratos inteligentes sejam armazenados de forma segura e pública, proporcionando automação e transparência.
Os smart contracts são essencialmente contratos digitais baseados em códigos de programação, que estabelecem automaticamente as obrigações e condições acordadas entre as partes. Quando essas condições são satisfeitas, o contrato é executado sem a necessidade de intervenção manual. Isso oferece vantagens consideráveis em termos de automação, segurança e rapidez na execução, promovendo uma maior transparência nas transações entre as partes envolvidas. Dessa forma, os contratos inteligentes não dependem da boa-fé entre as partes envolvidas, pois são programados para serem executados automaticamente quando determinadas condições predefinidas forem atendidas. Isso elimina a necessidade de intermediários ou ações manuais para o cumprimento de suas cláusulas, bem como, estejam protegidos contra fraudes e adulterações.
Em uma descompromissada análise, os contratos inteligentes foram tidos como sucedâneos ou equivalentes a contratos de adesão. Contudo, não há fundamento para estabelecer esta equivalência. Os contratos de adesão e os contratos inteligentes diferem fundamentalmente em termos de flexibilidade, execução e transparência. Nos contratos de adesão, a parte aderente não possui margem para negociar as cláusulas, aceitando as condições previamente estabelecidas. Já os contratos inteligentes, apesar de rígidos após sua programação, podem ser minuciosamente ajustados conforme as necessidades das partes, permitindo uma maior flexibilidade na definição de cláusulas automatizadas. Assim que as condições programadas forem efetivadas, o contrato é cumprido sem necessidade de qualquer ação adicional. Já os contratos de adesão dependem do cumprimento voluntário ou judicial, em caso de inadimplemento.
A aplicação dos contratos inteligentes ainda não é plenamente explorada, mas já são identificados cenários nos quais, dado o volume de dados ou recorrência de ações, seus benefícios são inegáveis. Um exemplo de contrato inteligente pode ser imaginado em uma operação de distribuição de pagamentos de direitos autorais patrimoniais sobre uso de obra fonográfica. Um titular destes direitos pode registrar suas músicas em uma plataforma digital baseada em blockchain, e o contrato inteligente é programado para distribuir automaticamente os pagamentos de sempre que a música for tocada em uma plataforma de streaming. O contrato coleta dados diretamente da plataforma de streaming, contabiliza o número de vezes que a música foi tocada e distribui os valores devidos ao artista, gravadora e outros envolvidos, de acordo com as condições previamente programadas. Esse processo elimina a necessidade de intermediários e garante que os pagamentos sejam feitos de maneira precisa e automática, sempre que o contrato identificar que a condição de execução foi cumprida.
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Outro exemplo ilustrativo é o uso de contratos inteligentes no comércio internacional. No contexto de uma exportação de mercadorias em que o pagamento deve ser feito após a entrega confirmada, um contrato inteligente pode ser programado para liberar o pagamento ao exportador assim que o sistema de monitoramento de embarque confirmar que a mercadoria chegou ao destino. O contrato poderia ainda estar vinculado aos sistemas de transporte marítimo ou aéreo, que informam automaticamente quando o produto é despachado, em trânsito e entregue. Assim que a entrega for confirmada no sistema, o contrato inteligente libera o pagamento sem a necessidade de qualquer intervenção humana ou complexos procedimentos manuais de verificação.
Na gestão de cadeias de suprimento, os contratos inteligentes se mostram como mais uma ferramenta para satisfazer a adequação de prazos de entrega e qualidade dos produtos. Um contrato pode ser programado para liberar o pagamento ao fornecedor apenas após a entrega dos produtos e a verificação de sua qualidade. Com o auxílio de dispositivos de IoT (Internet of Things), o contrato monitora as entregas e, uma vez que os termos são cumpridos, o pagamento é automaticamente liberado. Isso proporciona transparência em todas as etapas da cadeia de suprimento, eliminando disputas e atrasos no pagamento.
Os contratos inteligentes também têm o potencial de funcionalidade em programas de fidelidade. Por exemplo, um contrato pode ser programado para emitir pontos automaticamente após a compra de produtos ou serviços, com base em condições predefinidas, como o valor gasto pelo cliente. O contrato verifica o saldo de pontos e permite que o cliente os utilize para novas compras, sem a necessidade de processamento manual. Esse sistema torna os programas de fidelidade mais eficientes e transparentes, beneficiando tanto as empresas quanto os consumidores.
No que diz respeito à transparência, os contratos inteligentes operam em redes distribuídas, como blockchain, o que garante a imutabilidade dos registros e a transparência nas transações, sem a necessidade de confiar unicamente na boa-fé das partes, como acontece nos contratos de adesão. Isso reduz a possibilidade de litígios e promove uma execução mais previsível e segura das obrigações contratuais. Outro benefício de relevo é a exposição reduzida a erros humanos, uma vez que o processo é automatizado.
Além disso, a automação proporcionada por essa tecnologia oferece maior segurança jurídica, já que as condições acordadas são cumpridas conforme programado, sem o risco de alterações ou descumprimentos posteriores. A rapidez na execução das cláusulas é um fator importante, uma vez que o cumprimento ocorre de maneira imediata, assim que as condições são atendidas, eliminando a morosidade típica de contratos tradicionais.
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Apesar das inovações, os contratos inteligentes enfrentam desafios e limitações. Um dos principais desafios está relacionado à adaptação dos termos contratuais a eventos imprevistos. Ao contrário dos contratos tradicionais, os contratos inteligentes são executados automaticamente com base no código programado, o que significa que são rígidos e, uma vez em operação, não permitem alterações ou flexibilidade. Isso pode se tornar problemático em situações que exijam interpretação jurídica, já que o código não acomoda facilmente cláusulas subjetivas ou modificações contratuais posteriores. Outro aspecto importante é a necessidade de precisão extrema na programação dos termos contratuais. Qualquer erro no código pode levar a uma execução incorreta ou falhas no cumprimento do contrato.
Sua pré-programação pode, ainda, trazer desafios novos para as partes contratantes e nos litígios deles decorrentes. Embora a tecnologia blockchain forneça segurança e transparência, questões como responsabilidade e jurisdição em caso de falhas ou disputas permanecem em aberto. Outro ponto de atenção é o uso de “oráculos” – fontes de dados externas ao blockchain que fornecem informações para a execução dos contratos. Se os dados transmitidos pelos oráculos forem incorretos, o contrato pode ser executado de forma equivocada, resultando em danos às partes envolvidas.
No cenário atual, a associação da tecnologia blockchain com os contratos inteligentes traz um modelo mais eficiente e moderno, que combina automação, segurança e redução de custos. No entanto, o sucesso dessa tecnologia depende da superação de desafios técnicos e regulatórios, assim como da evolução das legislações que tratam de sua aplicação. À medida que são identificadas as oportunidades de utilização desta ferramenta com maior previsibilidade de seus efeitos, a adoção desses contratos pode crescer, trazendo consigo um futuro em que a segurança, a eficiência e a automação integrem cotidianamente as transações contratuais, tanto no âmbito pessoal quanto empresarial.
Rafael Valadares – Advogado sênior da Lee, Brock, Camargo Advogados. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)