Desde o dia 2 de março de 2023 passou a vigorar a Lei 14.443/2022, que alterou a Lei de Planejamento Familiar (Lei 9.263/1966) para determinar prazo para oferecimento de métodos e técnicas contraceptivas e disciplinar condições para esterilização voluntária, no âmbito do planejamento familiar.
Essa atualização permite que homens e mulheres maiores de 21 anos, ou, pelo menos, com dois filhos vivos, possam se submeter a procedimentos de laqueadura ou vasectomia sem a necessidade de autorização do parceiro ou parceira, desde que tenham capacidade civil plena e sejam capazes de expressar sua vontade de forma livre e esclarecida.
Antes dessa lei, a realização desses procedimentos exigia o consentimento expresso dos cônjuges na vigência da sociedade conjugal (artigo 10, §5º, agora revogado), o que gerava problemas para as pessoas, sobretudo mulheres, que não conseguiam obtê-la por diversos motivos, incluindo casos de violência doméstica, separação, divergências quanto ao planejamento familiar ou relativização das autonomias individuais.
Com a essa alteração, fica o questionamento: há motivos para comemorar ou ainda temos uma jornada a percorrer?
A sociedade civil evolui em uma velocidade maior do que o Direito, que precisa avançar para regular novas relações jurídicas, estabelecer limites e garantir direitos que são conquistados após muitas reivindicações políticas de grupos sociais específicos.
A evolução trazida pela nova lei não é diferente. Garantir condições mais propícias para a esterilização voluntária permite um maior exercício da autonomia reprodutiva das pessoas, ou seja, o direito de decidir livremente sobre ter ou não filhos, quando e como ter, consolidando um passo para a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil.
Os direitos sexuais e reprodutivos representam um conjunto de direitos humanos e fundamentais já assegurados pelo direito internacional dos direitos humanos e direito brasileiro, destinados a reconhecer proteções específicas para a vida reprodutiva.
Assim como em outros contextos, é importante lembrar que o Brasil possui um histórico de práticas de esterilizações forçadas praticadas em mulheres para implementação de políticas de controle populacional, envolvendo graves violações dos direitos humanos contra grupos marginalizados, persistindo até hoje [1].
Porém, o direito constitucional assegura o direito à vida, à saúde, à igualdade, integridade pessoal e tratamento humano e liberdade de expressão, que se relacionam diretamente com a temática. Há, ainda, o dispositivo constitucional que dispõe sobre o planejamento familiar, de acordo com o artigo 226, § 7º da Constituição Federal de 1988, que é um desdobramento dos direitos sexuais e reprodutivos e é regulado pela Lei 9.263/1966.
Além disso, o país é signatário de diversos tratados internacionais de direitos humanos que também garantem esse direito, a exemplo da Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969 e Convenção Americana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).
No conteúdo normativo desses tratados, há dispositivos que garantem às pessoas decidirem livremente sobre a sua vida reprodutiva de modo geral, assim como ter ou não filhos, a diferença de idade que haverá entre eles (caso desejem mais do que um filho), bem como o direito de ter acesso a informações e serviços de planejamento familiar sem qualquer tipo de discriminação ou violação de direitos humanos, assegurados pelo Estado.
Internacionalmente, as preocupações sobre possíveis violações de tratados internacionais de direitos humanos neste tema apresentam repercussões. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
Já se manifestaram expressando preocupação com as esterilizações coercitivas e forçadas, bem como com as restrições à laqueadura e vasectomia nos casos de esterilizações voluntárias, considerando que tais restrições poderiam violar os direitos das mulheres à autonomia reprodutiva, à vida privada, à igualdade e à não discriminação, conforme estabelecido em tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)
E a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres [2].
A ONU também denuncia todas as formas de esterilizações forçadas e coercitivas, recomendando sobre a importância do acesso à laqueadura e vasectomia consentida e esclarecida como parte dos serviços de saúde reprodutiva e planejamento familiar, reconhecendo que a restrição ao acesso a esses serviços pode limitar o exercício dos direitos humanos, incluindo o direito à saúde, à vida privada e à autonomia reprodutiva [3].
Portanto, as mudanças de regras que permitem a laqueadura e a vasectomia sem a necessidade de aval do cônjuge e com redução da idade mínima como requisito apresentam maior consonância com a normativa internacional e brasileira de proteção aos direitos humanos.
Inclusive, em 2018, foi iniciada a discussão sobre a legitimidade das exigências de idade mínima e autorização do cônjuge no Supremo Tribunal Federal via Ação Direta de Inconstitucionalidade (nº 5.097 e 5.911), que acabou sendo julgada prejudicada em razão da aprovação da legislação aqui debatida.
Além dos requisitos indicados, antes da nova lei (Lei 14.443/2022), a realização desses procedimentos exigia que a pessoa interessada em realizar os procedimentos fosse informada não apenas sobre os riscos e benefícios, mas também submetida às outras opções de planejamento familiar disponíveis.
Com as atualizações, a pessoa interessada deverá passar por uma consulta com um profissional de saúde e ser acompanhada por um período mínimo de 60 dias antes de realizar o procedimento, no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade.
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Inclusive aconselhamento por equipe multidisciplinar, com vistas a desencorajar a esterilização precoce e deverá receber informações sobre os métodos contraceptivos reversíveis, como pílulas anticoncepcionais, dispositivos intrauterinos (DIU), entre outros, além dos riscos e benefícios de realizar a laqueadura ou a vasectomia.
Se ainda assim decidir realizar o procedimento, deverá assinar um termo de consentimento livre e esclarecido, atestando que está ciente de todas as informações fornecidas.
O mesmo procedimento também passa a valer para as mulheres que estejam em período de parto, observadas as devidas condições médicas e o prazo entre a manifestação da vontade e o parto.
De acordo com as diretrizes internacionais, o consentimento é personalíssimo e precisa ser totalmente informado. Uma prática de esterilização coercitiva ou que viole o consentimento na sua forma livre, informada e esclarecida é discriminatória e viola vários outros direitos humanos, incluindo o direito à saúde, o direito à privacidade, o direito de constituir família e o direito à informação.
Assim, essa nova exigência tem como objetivo garantir que a pessoa esteja plenamente informada sobre as suas opções de planejamento familiar e os riscos envolvidos na realização da laqueadura e vasectomia, permitindo uma escolha consciente e esclarecida.
Além disso, a nova lei também determina que os profissionais de saúde que realizam este procedimento sejam capacitados e treinados para prestar informações claras e garantir que a pessoa interessada esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais e seja capaz de expressar sua vontade de forma livre e esclarecida.
Em suma, esses avanços incluem:
1) Maior garantia do direito à autonomia reprodutiva: As alterações permitem que as pessoas possam tomar decisões sobre sua própria vida reprodutiva, sem a necessidade de autorização do cônjuge na constância da sociedade conjugal, o que promove a igualdade de gênero e a proteção da dignidade humana.
2) Redução de casos de violência doméstica: A exigência de autorização do cônjuge para a realização desses procedimentos pode colocar as pessoas em situações de risco, especialmente em casos de violência doméstica. Assim, a legislação possibilita que as pessoas possam fazer suas próprias escolhas em relação à sua vida reprodutiva, sem a interferência de terceiros.
3) Acesso à informação sobre o planejamento familiar: Com a liberação da laqueadura e vasectomia sem a necessidade de consentimento expresso dos cônjuges, as pessoas podem ter mais autonomia e acesso a informações e serviços de planejamento familiar, o que pode contribuir para a redução do número de gestações indesejadas e prevenir a disseminação de doenças sexualmente transmissíveis.
Além disso, a redução da idade mínima de 25 para 21 anos de idade não é, por si, medida que coloca em risco a plena consciência dos interessados no procedimento, sendo possível que os riscos e benefícios sejam considerados antes da decisão de realizar o procedimento, juntamente com a assistência médica multidisciplinar.
Segundo o Ministério da Saúde, a idade mínima para a realização da laqueadura e vasectomia tem como objetivo garantir que as pessoas estejam plenamente informadas sobre as suas opções de planejamento familiar e os riscos envolvidos na realização desses procedimentos, e que tenham tido tempo para refletir sobre essa decisão.
4) Promoção da saúde pública: A nova legislação pode ajudar a reduzir a taxa de mortalidade materna e infantil no país, já que a realização de procedimentos de laqueadura e vasectomia são uma forma segura e eficaz de prevenir a gravidez em pessoas que não desejam ter filhos.
Portanto, a aprovação da Lei 14.443/2022, que amplia o acesso à laqueadura e vasectomia no Brasil, representa um avanço na garantia dos direitos humanos e na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos, indo em conformidade aos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil é signatário, ao mesmo passo em que traz importantes avanços sociais para a sociedade brasileira.
É uma demonstração, portanto, de caminho percorrido para a efetivação da dignidade da pessoa humana e liberdade individual das pessoas, ou seja, a autodeterminação sobre os próprios corpos, principalmente em relação às mulheres.
[1] UNITED NATIONS. The Danish Institute for Human Rights. Reproductive Rights are Human Rights. A Handbook for national human rights institutions. 2014. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Publications/NHRIHandbook.pdf. Acesso em: 07. mar 2023.
[2] COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Accesso a la información em matéria reproductiva desde uma perspectiva de derechos humanos. Organização dos Estados Americanos, 2011. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso I.V. vs. Bolívia. Sentença de 30 de novembro de 2016. §155. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_329_esp.pdf. Acesso em: 08 mar. 2023.
[3] UNITED NATIONS. The Danish Institute for Human Rights. Reproductive Rights are Human Rights. A Handbook for national human rights institutions. 2014. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Publications/NHRIHandbook.pdf.
Acesso em: 07. mar 2023. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕESUNIDAS (ONU) MULHERES. Nota do UNFPA, ONU Mulheres e ACNUDH sobre esterilização não voluntária. 26 de junho de 2018. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/noticias/nota-do-unfpa-onu-mulheres-e-acnudh-sobre-esterilizacao-nao-voluntaria/. Acesso em: 07. mar 2023.