Para a indústria do vestuário se encaixar no figurino ESG de boas práticas ambientais, sociais e governança, terá de passar por muitos ajustes. No volume global, a indústria têxtil consome cerca de 93 bilhões de metros cúbicos de água na fabricação, despeja meia tonelada de microfibras nos oceanos e contribui com 10% das emissões de gases de efeito estufa (GEE), muito acima do total envolvido em todos os voos internacionais e transportes marítimos, segundo o Banco Mundial.
Com a fast fashion — de ciclos de coleções mais curtos, vida abreviadíssima, custos mais baixos e uso intensivo de fibras químicas —, esse cenário foi agravado porque os consumidores compram 60% mais peças de vestuário que faziam em 2000, com o agravante de utilizarem por menos tempo ainda.
Diante desse cenário, a Comissão Europeia vem desenhando um molde mais circular e sustentável para a indústria fashion de seus Estados-membros, consolidando um pacote de propostas. Uma das mudanças é a criação da Responsabilidade Ampliada do Produtor, que será responsável pelos resíduos gerados, promovendo a circularidade de todo o ciclo de vida do material.
O setor descarta 87% das fibras utilizadas nas confecções, sendo que grande parte delas é de origem química, como o poliéster, que leva cerca de 200 anos para se degradar na natureza. A proposta segue as mesmas premissas da legislação de logística reversa e deve entrar em vigor em 2025.
O sonho do mundo sustentável, pela agenda ESG, está voltado à produção com pouco desperdício ou, de preferência, com desperdício zero. Por isso, o upcycling é um conceito que está se tornando uma tendência, indo além da reciclagem, pois implica em criar um item novo a partir de matérias descartadas, reparadas ou reformadas, agregando valor ao objeto criado, superior ao produto original.
O termo upcycling é novo, mas foi invocado pela primeira vez na década de 1990 pelo economista Gunter Pauli, como prolongação da vida útil dos tecidos em qualquer escala, no livro “Upsizing: the road to zero emissions: more jobs, more income and no pollution”
e consolidou-se com a publicação da obra “Cradle to Cradle: remaking the way we make things”, do químico Michael Braungart e do arquiteto William McDonough[1], impresso inicialmente com tinta à base de óleo de soja para, justamente, permitir sua remoção e viabilizar a publicação de um outro livro, evitando fomentar resíduos e sustentando a ideia da economia circular.
Nesse livro-manifesto contra o consumo excessivo, os autores propõem que o lixo seja vertido como alimento para o meio ambiente a promover a separação dos nutrientes biológicos e técnicos para facilitar o upcycling e a adoção de práticas ecoeficientes e circulares.
Os autores relembram que o planeta Terra é um sistema fechado, no qual o lixo não fica em um lugar abstrato “fora do nosso mundo”, por isso os indivíduos devem reduzir ou eliminar os resíduos nocivos. No setor de vestuário, somente o processo produtivo gera 15% de resíduos.
A proposta do Cradle to Cradle (do berço ao berço) tem encontrado eco na indústria da moda com o slow fashion, preocupado em ampliar o ciclo de vida dos itens e a preços mais justos.
O upcycling está em oposição ao downcycling, no qual acontece a reciclagem e reutilização de materiais, criando versões menos valiosas que a originária. É o caso de latinhas de alumínio, plásticos, vidros e papeis transformados em material bruto mecanicamente para ser reutilizado e criar novas latinhas, garrafas e tipos de papéis. Isso também se opera na reciclagem de tecidos quando a roupa é triturada ou tratada quimicamente e a fibra resultante se transforma em novo tecido.
O foco do upcycling reside na preocupação com o desperdício e com a preservação ambiental. Os materiais são reutilizados continuamente, e não se transformam em resíduos. Os números surpreendem quando falamos, por exemplo, de vestimentas. Cada americano descarta anualmente 65 quilos de roupas e o europeu, 11, que, se não tiverem destinação dentro dos 3R (reduzir, reutilizar e reciclar), acabam nos aterros sanitários a gerar mais danos ambientais.
Constituindo uma prática de economia circular, o upcycling está em contraposição à economia linear (que consiste em fabricar, usar e descartar) .Ao aumentar a vida útil dos produtos, gera impactos ambientais positivos de grande monta, ainda mais no universo da moda, que possui dimensões gigantescas a gerar riquezas equivalentes a 2% do PIB mundial (USD 3 trilhões), mas com descarte de 2/3 de sua produção em aterros sanitários.
Para mudar esse padrão, o upcycling vem sendo compreendido como uma boa estratégia para reduzir o consumo de materiais, os impactos ambientais, atender à demanda de consumidores cada dia mais conscientes e consolidar uma mudança sistêmica.
A estimativa é que uma simples camiseta de algodão consuma até 20 mil litros de água para ser produzida, segundo a Work Wildlife Fund. É uma realidade insustentável diante dos recursos finitos e da crise hídrica planetária, que de acordo com a ONU, até 2025, afetará 52 países e a vida de 3,5 bilhões de pessoas.
O quadro também é preocupante porque o mundo consome na média global 13K de têxtil por habitante, o equivalente a 100 milhões de toneladas. Somente na Europa há um descarte anual de 5,8 milhões de toneladas de têxteis, sendo que menos de 1% da indústria está adotando o upcycling, atualmente.
A despeito dos números do mundo fashion, essa preocupação com a sustentabilidade não passou despercebida, até intuitivamente, para um ícone da história moda mundial, Coco Chanel. Ela era efusivamente contra a moda que não fosse durável, a ponto de registrar que: “Não consigo imaginar que se jogue uma roupa fora, só porque é primavera.”
Na tentativa de reverter essa situação precária, os novos regulamentos da Comissão Europeia preveem a criação do Passaporte Digital para Têxteis, dotados de informações sobre a sustentabilidade ambiental de um produto, dados para o consumidor sobre reparo e reciclagem, rastreamento da cadeia de suprimentos e até a proibição de destruição de têxteis não comercializados.
Em suma, a Comissão Europeia visa a implantar regras circulares e já definiu uma proposta para que produtos comercializados em seu bloco observem os padrões de circularidade, sendo, pois, duráveis, reutilizáveis e reparáveis.
No Brasil, um exemplo de circularidade aplicada ao descarte de peças de vestuário vem de uma empresa aérea, a Latam, que iniciou recentemente seu projeto de upcycling de uniformes usados, em parceria com uma organização de moda sustentável de Porto Alegre, para a qual doou 10 toneladas de itens.
Depois de passarem pela etapa de higienização, separação e descaracterização nas mãos de mulheres em situação de vulnerabilidade, seguem para as cooperativas de costureiras e artesãs para reinvenção de novas roupas, incluindo a criação de shoulder bags para a própria companhia aérea com a finalidade de serem usadas como brindes. Isso demonstra que a cadeia de valor do upcycling reúne muitos atores, passando pelos três pilares ESG: ambiental, social e governança.
A exemplo da União Europeia, o Brasil caminha para regular a otimização dos recursos têxteis. Tramita na Câmara dos Deputados o PL 270/2022, que propõe a criação do sistema nacional de logística reversa para resíduos têxteis, incluindo roupas e calçados, retalhos e alguns tipos de embalagens.
Pelo seu texto, os distribuidores financiariam a coleta e transferência do resíduo até o armazenamento secundário e os estabelecimentos comerciais serviriam de pontos de coletas para os consumidores. O grande incentivador seria a concessão de benefícios fiscais para os aderentes.
De forma isolada, o upcycling também vem se consolidando como tendência e ganhando adeptos no mundo da moda para atender um público cada vez mais circular. Marcas de luxo como a Prada e Miu Miu, entre outras, estão aderindo e lançando coleções inseridas nas práticas do upcycling.
Também é o caso da marca sueca Holdini, especializada em roupas para atividades ao ar livre, que emprega 100% de tecidos reciclados, renováveis e biodegradáveis, certificados pela Bluesign. E não para aí. Suas roupas de fibras naturais podem ser submetidas à compostagem e usadas no cultivo de alimentos.
Nesse sentido, até os clientes são incentivados a “compostarem” suas roupas que ficaram velhas demais, assim como as árvores devolvem ao solo seus resíduos na forma de nutrientes. O tempo de decomposição orgânica das roupas é de 6 a 12 meses.
Por ser o setor produtivo que ocupa o quarto lugar em emissão de GEE, só ficando atrás das indústrias de alimentos, habitação e transporte, a indústria do vestuário é uma das mais visadas pelos governos face à emergência climática planetária e à necessidade de cumprimento das metas do Acordo de Paris.
O desafio europeu é grande, sem dúvida, porque conta do prazo apertado para impor mudanças radicais a essa indústria, como as regras de design ecológico, além de trabalhar para alterar o estilo de vida dos consumidores e, ainda, buscar sua adesão incondicional à cultura do upcycling e à economia circular.
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[1] MCDONOUGH, W.; BRAUNGART, M. Cradle to Cradle: Remaking the Way We Make Things. Nova York: North Point Press, 2008.
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YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
JAYME BARBOSA LIMA NETTO – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados e mestrando em Direito dos Negócios na Fundação Getulio Vargas