A recente mudança na Carteira de Identidade Nacional (CIN)[1] representa uma grande conquista em diversas frentes, principalmente para a população LGBTQIAP+. A partir de uma análise promovida pelo Ministério de Gestão e Inovação, foram anunciadas duas grandes alterações no referido documento: a unificação do campo “nome”, sem distinção entre o nome social e o nome de registro civil e a extinção do campo “sexo”.
Os documentos de identificação e individualização do cidadão brasileiro, como o RG, CPF, título de eleitor, Carteira de Trabalho ou de Motorista são declarações que permitem que qualquer pessoa exerça os direitos básicos inerentes ao ser humano para os atos da vida civil.
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Desse modo, diversos avanços já foram incorporados e atualizados ao longo dos anos, como a própria implementação da nova Carteira de Identidade Nacional (CIN), visando não só a solução de antigos problemas relativos às questões burocráticas e administrativas, mas também à modernização do sistema de identificação civil e unificação deste em todo o território brasileiro.
A conquista aqui apresentada, visa, principalmente, a garantir o direito de personalidade dos indivíduos, composta, inclusive, pela identidade de gênero, sendo necessário que todo cidadão possa ter meios de validar e ter reconhecida sua identidade enquanto resultado de um processo próprio de autodeterminação.
Assim, como bem pontuado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF) na Nota Técnica n. 4/2022[2], há de se considerar, entre outras questões, as situações vexatórias e constrangedoras principalmente sofridas pelas pessoas transexuais[3], o “T” da sigla LGBTQIAP+, sobretudo por aquelas que possuem dificuldades de efetuar a retificação do registro civil[4].
Nesse sentido, é importante ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro, por meio da Constituição Federal, possui como fundamento primordial a dignidade da pessoa humana[5] e busca construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem qualquer tipo de preconceito ou discriminação[6].
O direito à igualdade, protegido constitucionalmente, se traduz na garantia de que todos possam ter uma vida digna a partir do reconhecimento de suas identidades individuais e distintas, inclusive, da dualidade estabelecida pelo padrão heteronormativo, devendo ser garantido o desenvolvimento do ser no meio social, de forma que se possa promover o respeito à livre expressão identitária.
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Cabe ao Estado, dessa forma, acatar a liberdade de identidade de gênero, sendo este o verdadeiro direito à igualdade sem discriminações, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.275.
Nas palavras do Ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ADI mencionada acima, “É inaceitável, no Estado Democrático de Direito, inviabilizar a alguém a escolha do caminho a ser percorrido, obstando-lhe o protagonismo, pleno e feliz, da própria jornada. A dignidade da pessoa humana, princípio desprezado em tempos tão estranhos, deve prevalecer para assentar-se o direito do ser humano de buscar a integridade e apresentar-se à sociedade como de fato se enxerga.”
Portanto, a retirada de ambos os nomes na CNI, certamente, representa uma conquista, assim como a do sexo biológico, além de estabelecer ferramentas de participação social que simbolizam, sem dúvida, um verdadeiro instrumento democrático de inclusão.
*Carolina Mango é sócia e membra do subcomitê LGBTQIAP+ da Lee, Brock, Camargo Advogados.
*Lucas Andrade é advogado e membro do subcomitê LGBTQIAP+ da Lee, Brock, Camargo Advogados.
Referências
[1]https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2022/julho/nova-carteira-de-identidade-nacional-modelo-unico-a-partir-de-agosto
[2] https://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/notas-tecnicas/nota-tecnica-pfdc-mpf-4-2022-gt-lgbti
[3] https://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/notas-tecnicas/nota-tecnica-pfdc-mpf-4-2022-gt-lgbti
[4] A retificação de registro civil é um procedimento administrativo ou judicial em que o interessado busca alterar uma informação no seu registro civil.
[5] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana;
[6] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; (…) IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.