A crescente globalização, envolvendo inúmeros interesses e litígios transnacionais, fomentou o emprego do chamado forum shopping. A prática consiste em escolher a jurisdição mais favorável ao demandante nas hipóteses em que haja competências internacionais concorrentes, podendo o interessado escolher entre dois ou mais países para propor o seu processo.
O advogado Solano de Camargo, sócio da LBCA, conta que o polêmico instituto do Direito Internacional privado foi utilizado pela primeira vez em 1952, nos Estados Unidos, onde se popularizou.
Como naquele país cada estado tem sua própria lei, tornou-se comum a escolha pela melhor jurisdição nos casos em que mais de um estado era competente para julgar a causa.
Com base em sua tese de mestrado sobre o tema, Camargo escreveu o livro Forum Shopping: a escolha da jurisdição mais favorável (Intelecto Editora) no qual conta a história do forum shopping e identifica casos em que o instituto pode ser considerado abusivo.
Na obra, o autor expõe os argumentos pelos quais a doutrina e a jurisprudência internacionais qualificam o forum shopping como um possível abuso do direito processual, citando as duas principais críticas: a escolha de determinada jurisdição por um dos litigantes pode representar uma injustiça material ou uma denegação da justiça.
Alguns casos ilustram as críticas e como a prática tem sido utilizada em todo o mundo. Um deles aconteceu na Inglaterra, com o magnata russo Boris Berezovsky, que ficou conhecido no Brasil pela parceria da empresa MSI com o Corinthians. Com base na lei antidifamação inglesa, o magnata processou um blogueiro da Ucrânia, condenado a pagar uma indenização milionária. A lei é conhecida no mundo por ser mais favorável a quem reclama do que a quem se defende, uma vez que cabe a quem se defende provar que não quis ofender. A condenação foi possível porque para a norma basta que alguém tenha acessado uma reportagem naquele país para que o juiz inglês tenha competência para julgar.
Essa lei inglesa, inclusive, gerou uma reação nos Estados Unidos, país defensor da liberdade de expressão. Preocupados com processos contra seus jornalistas, alguns estados norte-americanos começaram a propor leis que não aceitavam homologação de sentença baseada na lei antidifamação inglesa. Isso aconteceu após uma jornalista de Nova York ir à falência após ser condenada na Inglaterra. Depois da movimentação dos estados, o governo Obama criou uma lei nacional determinando que serão aceitas sentenças contra liberdade de expressão desde que seja originária de país que respeita esta liberdade no mesmo nível dos Estados Unidos.
Camargo explica que o forum shopping é algo que, por si próprio, é insípido, e que não é possível controlar o que cada país quer julgar. Porém, é possível tentar regular alguns casos com acordos internacionais. Isso aconteceu, por exemplo, com o sequestro de menores. A Convenção da Haia estipulou que o domicílio do menor é competente para julgar com quem deve ficar a guarda.
“Porém, tem matérias que são mais complexas, principalmente envolvendo internet, quando se tem um site em português, com o provedor nos Estados Unidos, o cliente chinês e os dados na Rússia”, diz. Há também casos complexos de direitos de imagem e patente.
A questão da patente, inclusive, diz respeito a outro caso de forum shopping que pode ser considerado abusivo narrado por Solano de Camargo. O Regime Bruxelas-Lugano, na União Europeia, diz que quando houver um litígio entre duas partes e uma delas propõe uma ação em determinado país, este deve julgar tudo relativo a este processo.
Havendo violações de patente, o procedimento normal é a empresa titular da patente notifique extrajudicialmente a parte infratora para que pare de comercializar o produto protegido. Sabendo que a velocidade do processo varia conforme cada país e da regra do Regime Bruxelas-Lugano, a empresa infratora se antecipa a outra e entra com uma ação na Itália — que tem um Judiciário lento — para discutir a patente. Assim, a empresa infratora consegue manter seu produto no mercado por mais alguns anos, até que o juiz italiano decida a questão.
Solano de Camargo explica que essa estratégia ganhou o nome de torpedo italiano — uma referência aos comboios marítimos que deve seguir a velocidade do navio mais lento. Assim, se um navio recebe um torpedo, o comboio inteiro para. O advogado explica que também são considerados casos abusivos de forum shopping aqueles que protegem em demasia o autor do processo.
“É o caso da França, por exemplo, que julga todos os casos em função da nacionalidade. O Código Civil, que é da época de Napoleão, diz que a Justiça francesa é competente para julgar todos os processos nos quais um francês seja parte”, conta. Ao dar um exemplo prático disso, Camargo explica que se você está na cidade de São Paulo e se envolve em um acidente de carro com um francês, a França se considera competente para julgar o caso.
O chamado “guarda-chuva sueco” também é citado como abusivo. A lei de processo civil da Suécia diz que as cortes de lá podem julgar qualquer processo em que o réu tenha um patrimônio naquele país. Segundo Solano de Camargo isso tem gerado diversas críticas por ser considerada uma jurisdição exorbitante. “Imagine que uma pessoa está fazendo conexão e esquece no aeroporto um guarda-chuva. Para a Suécia, o tribunal de lá pode te julgar pois você possui um patrimônio naquele país”, exemplifica.
Forum shopping no Brasil
Pouco estudado no Brasil, o novo Código de Processo Civil criou uma espécie de guarda-chuva sueco em ações de alimentos. De acordo com o CPC, o juiz brasileiro é competente para julgar ação de alimentos desde que o réu tenha patrimônio no Brasil.
Isso, segundo o advogado, pode criar distorções absurdas. “Vamos supor que há um caso envolvendo uma família argentina, que mora na Argentina, mas que o pai possui qualquer patrimônio no Brasil. Para o novo CPC, o juiz brasileiro pode julgar a ação desta família, mesmo sem nem conhecer sua realidade, o que é essencial para esse tipo de ação. O novo CPC criou uma espécia de guarda-chuva brasileiro”, diz.
Segundo Camargo, a doutrina brasileira não tem explorado o fenômeno do forum shopping no Direito Civil, como nos países da União Europeia e do Mercosul. “O Direito Processual Civil brasileiro ignora o forum shopping abusivo no direito internacional, havendo diversas situações em que sentenças estrangeiras proferidas em outros países não deveriam ser reconhecidas no Brasil e vice-versa”, diz.
O lançamento do livro Forum Shopping: a escolha da jurisdição mais favorável acontece em São Paulo nesta terça-feira (4/4), às 19h, na faculdade de Direito da USP. Na obra o autor analisa também a doutrina e a jurisprudência estrangeira do forum shopping; os Protocolos de Las Leñas, Ouro Preto e Buenos Aires, no Mercosul e o Regime Bruxelas-Lugano, na União Europeia, além de conceituar vários princípios de Direito e suas regras de competência internacional.