A conexão entre a inteligência artificial e a pandemia causada pela COVID-19 foi revelada ao público em 31 dezembro de 2019, quando o sistema de inteligência artificial da BlueDot, empresa especializada em detectar surtos com impactos globais, comunicou às organizações de saúde e algumas empresas dados e registro de provável epidemia virológica em Wuhan, na China
A detecção da doença foi possível através da leitura diária – por meio da inteligência artificial – em mais de 100 mil fontes internacionais em 65 idiomas diferentes.
Os algoritmos desta empresa, que combinam este conteúdo a mais de 100 conjuntos de dados, são capazes de fornecer insights críticos sobre a disseminação de mais de 150 doenças infecciosas, entre elas a COVID-19.
Além de detectar a doença, a inteligência artificial que funciona por meio de técnicas de machine learning e algoritmos de previsão teve a capacidade de prever a sua dispersão, isto é, a rota que o vírus iria seguir, ao combinar os dados de itinerários de voos, dados de dispositivos móveis, as condições climáticas, a capacidade dos sistemas de saúde das regiões atingidas, entre outros dados.
Já no final de janeiro de 2020, aeroportos na China, Japão, Indonésia e Índia passaram a utilizar outra tecnologia com inteligência artificial, os scanners térmicos que medem a temperatura corporal à distância, inclusive diferenciando aqueles passageiros com febre, para identificar indivíduos possivelmente contaminados com a COVID-19.
Com a evolução da pandemia, estes sensores térmicos também passaram a ser utilizados em áreas públicas e meios de transporte terrestre.
E esta providência é apenas o início da vigilância que o Estado passa a realizar para diminuir a propagação do vírus. Denominada de vigilância digital, rastreamento ou monitoramento de vigilância, a metodologia desses países coleta dados de forma recorrente e aplica inteligência artificial para conter o avanço da pandemia.
Na hipótese de a temperatura do indivíduo estar muito alta, todas as pessoas que tiveram contato com ele são notificadas por meio de uma mensagem via SMS (short menssage service) para que fiquem em isolamento.
Na China, por exemplo, esta providência somente é possível porque são mais de 200 milhões de câmeras de vigilância espalhadas, tanto em locais abertos como, por exemplo, dentro de um vagão do metrô. A dizer, o Estado sabe quem sentou ao lado de quem no transporte público.
Na China quem controla este grande volume de dados (Big data) é o Estado, que sabe a localização do indivíduo, os locais por onde passou, as pessoas com as quais interagiu, os termos pesquisados nos sites de busca, os produtos adquiridos no mercado e na farmácia, entre tantos outros dados.
Evidente que muitas são as críticas e os riscos associados a estas práticas, uma vez que este monitoramento não se limita às questões médicas e sanitárias em caso de pandemia. O sistema de crédito social chinês (social credit system), que além das práticas de crédito também considera a reputação dos indivíduos, o que contempla, por exemplo, as leituras realizadas e curtidas nas redes sociais, doar sangue, descartar corretamente o lixo, atravessar o farol vermelho, etc.
Essas análises podem acarretar, entre outras coisas, perda do emprego do cidadão.
Como medida prática para conter o avanço do vírus, o indivíduo que tem um aplicativo específico instalado em seu celular, recebe uma mensagem de alerta ao se aproximar de um local com pessoas que estão infectadas. Todas estas informações processadas por algoritmos, indicando possíveis infectados e a sua exata localização e medidas de isolamento específico têm sido utilizadas com sucesso pela Coreia do Sul, onde os números de novos infectados e novas mortes têm quedas recorrentes nas últimas semanas.
Na Europa, onde o compartilhamento de dados com o Estado é muito mais rigoroso e criterioso, e também onde prevalecem as medidas históricas e analógicas de isolamento – como o fechamento das fronteiras, espaços públicos e estabelecimentos comerciais, os números de infectados e mortes decorrentes da pandemia continuam em números elevados.
Transcorridas algumas poucas semanas da pandemia, e comparando os resultados obtidos pelos países orientais com os números declarados pelos do ocidente, os números revelam que, quanto maior a utilização da inteligência artificial, menor é o crescimento de novos casos de COVID-19 e, consequentemente, menor o número de mortes e menor o impacto econômico.
A margem das críticas, fato é que a vigilância digital se mostrou extremamente eficaz no combate a pandemia.
O governo brasileiro descartou a efetividade dos scanners térmicos, quando em janeiro o País ainda tinha somente casos suspeitos. Mas há notícias no sentido de que a tecnologia de empresas de telefonia, que indica a localização de grupos de indivíduos anonimizados, será utilizada pelas prefeituras do Rio de Janeiro e Recife para acompanhar a movimentação das pessoas durante o período de isolamento. Não se tratam dos mesmos recursos tecnológicos usados dos países orientais, mas é uma iniciativa no sentido da vigilância digital.
Então, por que a Europa e o Brasil não se utilizam das mesmas ferramentas de inteligência artificial para conter os avanços da COVID-19? A resposta estaria no custo? A justificativa seria a possível descrença das autoridades públicas sobre a real eficácia? Ou a diferença entre as leis de privacidade e proteção de dados pessoais dos países orientais e ocidentais? Seria possível encontrar um equilíbrio entre proteção de dados e vigilância digital?
Os sul-coreanos aceitaram esta troca necessária, a perda de privacidade para conter o avanço da pandemia. Evidente que a vigilância digital é uma das diversas medidas adotadas pela Coreia, neste momento.
É tempo de reflexão, ponderação e ação. Indubitavelmente, a pandemia alterou a história mundial e a velocidade da transformação digital. A inteligência artificial ganha cada vez mais relevância social e os seus riscos, ainda incalculáveis e imprevisíveis, agora, tem como ganho os benefícios desta tecnologia diante da maior crise global da era moderna.
Ao discorrer sobre tema, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, professor na Universidade de Berlim, defende que: (“…na Ásia as epidemias não são combatidas somente pelos virologistas e epidemiologistas, e sim principalmente pelos especialistas em informática e macrodados. Uma mudança de paradigma da qual a Europa ainda não se inteirou. Os apologistas da vigilância digital proclamariam que o big data salva vidas humanas”).
E, quanto a nós, ainda sem sabermos a extensão da pandemia na saúde e na vida de familiares, mesmo sem saber o potencial do impacto econômico-social desta pandemia, aceitaríamos a troca necessária? Parte dos dados pessoais pelo combate da pandemia d COVID-19 por prazo determinado?
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