Qual a sua avaliação sobre a discussão sobre a regulamentação das redes sociais no Brasil?
Com o fenômeno das redes sociais, nós tivemos uma revolução no âmbito das comunicações. Essa tecnologia acabou sendo absorvida pela humanidade de uma forma célere e maravilhosa, mas que acabou trazendo muitas consequências, como o decaimento do interesse da população pelas mídias tradicionais. Esse processo fez com que a liberdade de expressão, que rege a maior parte das redes sociais mais utilizadas, começasse a se espraiar pelo mundo inteiro.
Em um primeiro momento, começou-se a discutir a responsabilidade por aquilo que era postado. Por exemplo, na França, há alguns anos, houve uma discussão muito grande sobre a venda de memorabílias nazistas no Yahoo Market. Isso porque, em conformidade com a primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, você pode vender memorabília nazista, mas na França isso é um crime de lesa majestade. Para resolver esse problema, as pessoas que estavam em solo francês passaram a não ter mais acesso a esses anúncios.
Na Espanha, nós tivemos o caso de um senhor que, anos antes, havia perdido uma casa por dívidas previdenciárias, mas que toda vez que seu nome era colocado no Google, aparecia a sua citação através do diário oficial espanhol, o que lhe causava um embaraço muito grande. Esse caso deu origem à lei do esquecimento, que possibilitou as pessoas removerem dos buscadores fatos sobre si que elas não quisessem que ninguém soubesse e que já tivessem um prazo razoável. Na China, quando o cabo submarino ou o cabo terrestre chega ao país, ele é cortado e substituído por um cabo chinês, 100% monitorado pelo governo. A Rússia fez a mesma coisa.
Em 2013, nós tivemos o escândalo Snowden, que levou ao conhecimento do mundo que a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos analisava todo o conteúdo gerado na internet, com o monitoramento de palavras-chaves, intenções e pessoas específicas. Em seguida, nós tivemos a eleição americana de 2016, o Brexit e uma confusão de fake news direcionadas, feitas, principalmente, nas plataformas da Meta, como o Facebook, que são utilizadas por, praticamente, metade da humanidade.
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Depois disso, nós tivemos o episódio de perseguição de uma minoria muçulmana pela maioria budista em Mianmar, muito por conta de fake news espalhadas também através do Facebook, o que criou uma enorme pressão sobre Mark Zuckerberg na época. A situação descambou com o caso da Cambridge Analytics, que consistia no estudo de microdados de uma certa pessoa para fazê-la mudar de opinião com certos tipos de notícias.
Nesse momento, teve início uma série de discussões sobre a responsabilidade das redes sociais diante dessas situações. Por exemplo, no Brasil, o Marco Civil da Internet, que é de 2014, tem previsto no seu artigo 19 que as redes sociais não são responsáveis pelo conteúdo prestado por terceiros. Aqui, isso cabe ao Judiciário. O nosso caso é diferente de países como Polônia, Hungria, Rússia e China, onde isso cabe a um órgão do Poder Executivo, o que gera risco de politização e de silenciamento de grupos de oposição, e dos Estados Unidos, onde há uma imunidade total das redes sociais.
Com o tempo, começou-se a questionar no Brasil se era necessário ir ao Judiciário para tudo. Isso porque se aprendeu que não era necessário recorrer à justiça contra publicações que fazem apologia a temas como suicídio, automutilação, violência e discursos de ódio contra grupos vulneráveis como judeus, população LGBT, negros e mulheres.
Para chegarmos no estado de coisas que temos hoje, a direita começou a surgir, em diversos lugares do mundo, através da utilização das redes sociais, dando um banho na esquerda e ganhando eleições, como nos casos de Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil e Marine Le Pen na França, além de fenômenos como Nicolas Ferreira e Pablo Marçal.
Hoje, existe o discurso de que a culpa por essas situações se deve ao fato das redes sociais não serem reguladas. Um discurso que, muito claramente, é político, e não jurídico. Por exemplo, qual é a diferença entre uma fake news, uma desinformação e uma opinião equivocada? Além disso, nós temos uma questão não resolvida sobre o que é liberdade de expressão e até onde ela vai. Isso tem feito com que a necessidade de regulação seja no sentido de censura a opiniões contrárias, principalmente com relação à esquerda.
Isso tem feito com que todo o discurso de regulação das redes sociais, não só no Brasil, como no mundo, seja uma pauta da esquerda, que tem mostrado interesse em projetos de leis que façam com que as redes sociais façam uma censura sobre o que pode ser controvertido entre o que alguns consideram como fake news e outros como liberdade de expressão, sendo que, no Brasil, esse papel cabe ao Judiciário.
Na sua opinião, o que precisa ser regulamentado?
Como disse, já existem situações consolidadas de aprendizado que poderiam ser mais facilmente suprimidas das redes sociais, sem a necessidade de se passar pelo Judiciário. Isso não é o que o ministro Dias Toffoli propôs no julgamento da constitucionalidade do artigo 19, quando ele apresentou 12 medidas absolutamente genéricas, que, na prática, significam que se a rede social, na dúvida, não apagar o conteúdo, ela pode ser multada ou suspensa, como aconteceu com o WhatsApp algumas vezes, ou o que está na primeira versão do projeto de lei de regulamentação, que previa um órgão do poder executivo para fiscalizar a existência de fake news nas redes sociais. Na verdade, tudo isso é o aparelhamento da censura.
O que não se deve fazer é criar situações genéricas para as quais existem dúvidas objetivas a respeito, pois, no fundo, quem vai ser penalizado é a liberdade de expressão e a pessoa que divulga o conteúdo. Em vez de o governo querer fazer o que os dominicanos fizeram na idade média, quando eles queimaram livros, seria mais fácil dar letramento para a população. Por exemplo, o governo Fernando Henrique poderia ter proibido o fumo de cigarro no Brasil, mas optou por fazer uma campanha sobre os seus malefícios, o que acabou com a sua romantização. Como disse, o Estado não faz, absolutamente, nenhuma campanha em prol do letramento da população brasileira, que não é escolarizada e que se tornou digital antes de ser alfabetizada.
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O Estado deveria fazer esse letramento, mas ele quer voltar ao que acontecia na Idade Média, quando se tinha a inquisição e se queimava livros. Inclusive, o artigo 220 da Constituição brasileira não permite a censura prévia. Se eu falar uma besteira em uma rede social, já existe uma rede de proteção, muito bem estabelecida há décadas, que pode me valer uma pena de calúnia, injúria e difamação, além de eu ser processado civilmente a pagar indenização e ter o meu conteúdo removido.
Qual o impacto do novo Governo Trump nas empresas que controlam as redes sociais?
Veja o que aconteceu com o TikTok. O governo Biden deu um prazo para que ele fechasse nos Estados Unidos, sendo que esse prazo venceria logo após a posse do novo presidente. Dois dias antes da posse, a Google Play e a Apple Store pararam de disponibilizar o aplicativo, e quem tinha acesso a ele passou a ver uma mensagem que dizia que os serviços seriam suspensos em cumprimento a uma decisão da Suprema Corte Americana, mas que a empresa já estava dialogando com o novo governo. Dois dias depois, quando Trump emitiu uma ordem executiva dando mais 90 dias para que se chegasse a um acordo, o TikTok agradeceu por isso. Os 170 milhões de usuários da plataforma nos Estados Unidos viram a mensagem de esperança, e dois dias depois, a mensagem de agradecimento.
Quando Mark Zuckerberg suspendeu a contratação das empresas externas que faziam a moderação de conteúdo, ele contou que a Meta havia chegado à conclusão de que essas empresas estavam fazendo uso político da moderação, tanto que elas haviam tirado muito mais conteúdo da direita do que da esquerda. O ponto é que Zuckerberg não acabou com a moderação interna, mas criou um nível a mais de forma idêntica ao que existe no X, que são as notas da comunidade, ou seja, se alguém escreve alguma coisa que eu não concordo, eu escrevo outra. Esse é o princípio que está na primeira emenda da Constituição americana. Antes, o que estavam fazendo era apagar o que havia sido escrito. No Brasil, se essa pessoa voltasse a escrever, o seu acesso às redes, aos sites e aos canais seriam cancelados.
Qual país você considera mais avançado nesse assunto?
O mecanismo adotado pelo Brasil no Marco Civil da Internet criou um modelo que me parece muito mais evoluído que o modelo americano, que dá imunidade total às redes sociais, ou os modelos da União Europeia ou da Alemanha, que criam situações absolutamente subjetivas e dão para a rede social um poder absurdo de decidir o conteúdo que deve ou não prevalecer. O modelo brasileiro, que deixa essa questão para o Judiciário, funciona perfeitamente bem.
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Solano de Camargo – Professor de Direito Internacional na USP, especialista em Direito Digital, IA e Proteção de Dados, sócio-fundador da LBCA e presidente da Comissão de LGPD e IA da OAB-SP.