Diante de uma perspectiva histórica, interações transnacionais e, mais precisamente, danos vivenciados em mais de uma jurisdição concomitantemente foram considerados exceções à regra geral de isolamento na produção do direito e de decisões judiciais por Estados soberanos.
Isso começou a mudar em alguma medida e, especialmente no âmbito da União Europeia, com o surgimento de casos de danos ambientais plurilocalizados (caso Bier[1]), evoluindo com a propositura de ações por difamação praticadas em publicações distribuídas em mais de um Estado (caso Shevill[2]).
Essas hipóteses de concorrência internacional de jurisdições alcançaram atualmente um patamar de relevância incomparável na história, com a massificação da internet, dos modelos de comunicação e dos conflitos dali advindos.
Mesmo na ausência de decisões de tribunais superiores no Brasil, é relevante destacar que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) já indeferiu pedidos de ampliação da competência internacional das cortes nacionais em assuntos relacionados à internet em algumas oportunidades.
Em 2011, a corte considerou suficiente, para fins de comprovação de cumprimento de ordem judicial de remoção, que resultados de decisões colegiadas proferidas por tribunais considerados infringentes pelo Judiciário fossem desindexados do motor de buscas da Google, porém apenas nos resultados direcionados ao público brasileiro (www.google.com.br), indeferindo a desvinculação nos resultados trazidos em outras jurisdições, como pelo endereço www.google.com.
Em 2016, ao apreciar uma demanda que buscava a remoção de postagens no Twitter, o tribunal destacou que:
“Embora o conteúdo ilícito ainda possa ser acessado mediante conexões estrangeiras, a determinação de remoção de conteúdo, prolatada por juiz brasileiro, está restrita ao território nacional, não se estendendo a outros países como medida impositiva, em clara observância ao princípio da territorialidade”[3].
No mesmo ano de 2016, o tribunal decidiu, num recurso que versava sobre o bloqueio de acesso a um vídeo no YouTube: “a regra é que a remoção de conteúdo deve ser local, não global”. Desse modo, “a jurisdição brasileira não tem competência para determinar a alteração de conteúdos em outros países; ela não pode atingir a produção e circulação de informações e conteúdos em outros Estados soberanos”[4].
Em 2017, em outro caso também envolvendo o YouTube, o TJSP teve a oportunidade de destacar que:
“À evidência, o comando judicial limita-se ao território nacional, à luz do disposto no artigo 16 do Novo CPC (antigo 1º do CPC de 1973), de sorte que não se pode compelir o apelante […] a promover a retirada desse mesmo vídeo em outros países”[5].
No mesmo ano de 2017, a corte paulista afastou a ampliação de uma ordem judicial de remoção de postagem em um blog, entendendo que:
“O cumprimento da execução foi verificado, tendo em vista que a remoção da fotomontagem nos limites do território nacional atende aos ditames da lei 12.965/2014 (o Marco Civil da Internet) […] porque esta lei que regula a utilização do uso da internet está limitada ao território nacional, não podendo nossa legislação estender sua aplicação além das fronteiras nacionais, pois isso violaria o princípio da soberania”.
Já em 2019, o TJSP entendeu que “a despeito das alegações da agravante de que os canais pertencentes ao réu estão ativos em outros países”, não haveria descumprimento de obrigação de fazer determinada pelo Judiciário brasileiro, caso o material reputado infringente tivesse o seu acesso indisponibilizado às pessoas localizadas no território nacional. Assim,
“conforme as diretrizes da Lei 12.965/2014, a qual estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e em observância ao art. 16 do Código de Processo Civil e à soberania dos Estados prevista no art. 4º, III, e V da Constituição Federal; a versão brasileira do YouTube é o ambiente adequado para o cumprimento das decisões proferidas no Brasil”.
No mesmo mês, outra decisão do TJSP entendeu que:
“Muito embora a internet seja uma rede mundial, a competência do magistrado restringe-se ao território nacional, não lhe sendo possível determinar a exclusão dos conteúdos em outros países, os quais possuem seu próprio ordenamento jurídico”.
Em outro recurso julgado ainda em 2019 e também vinculado a um pedido de remoção de vídeo do YouTube, o tribunal afirmou que:
“Não pode o agravante ser compelido ao bloqueio do acesso de usuários de outros países ao conteúdo supostamente ofensivo, diante da aplicação, no caso, do princípio da territorialidade, previsto no artigo 16 do Código de Processo Civil”.
Por fim, em 2020, em outro caso envolvendo postagem no Twitter, decidiu o TJSP que:
“A determinação para remoção de conteúdo, por ter sido proferida por juiz brasileiro, a princípio, deve restringir-se ao território nacional, não se estendendo a conexões provenientes de outros países, em respeito aos princípios da territorialidade e soberania”.
Discussões sobre a efetividade das soluções adotadas nos julgamentos acima são deveras pertinentes. A esse respeito, é importante esclarecer que a efetivação de comandos judiciais de remoção de ilícito na internet dificilmente ocorrerá em seu patamar máximo, ou seja, no sentido de que 100% dos usuários de internet ficarão impossibilitados de acessar o conteúdo tido como infringente, e isso não se restringe a questões territoriais.
Por exemplo, uma determinação judicial pode ordenar a remoção de um conteúdo inserto em uma URL e desse mesmo material por ser reinserido em outro endereço eletrônico ou mesmo em outra rede social.
Essa situação, aliás, foi percebida pelo ministro Alexandre de Moraes no Inquérito 4.781/DF quando, no objetivo de afastar uma alegação de censura prévia decorrente do bloqueio de perfis, reconheceu que os investigados continuavam se manifestando em redes sociais, mediante a criação de novos endereços, “não raras vezes repetindo as mesmas condutas criminosas”.
Esse fenômeno tem sido conhecido como a “Primeira Emenda do espaço virtual”. Na prática, a liberdade de expressão é garantida, se não pela lei material ou pelas decisões jurisdicionais, pela própria estrutura em que fora concebida a internet.
Os padrões e as possibilidades de anonimização; descentralização; desvinculação de critérios geográficos; criptografia; e a ausência de sistemas de identificação de materiais, em conjunto ou separadamente, contribuem para a permanência das postagens no ambiente online, não obstante as tentativas judiciais de remoção.
A rede foi concebida visando justamente a impedir atos de censura por uma autoridade central, e isso acaba gerando, na prática, imperfeições regulatórias indissociáveis.
Diversos Estados, então, podem conhecer e executar — especialmente porque as empresas de internet têm atuação global — decisões potencialmente diferentes e, nesse contexto, ocasionar impactos no acesso de pessoas localizadas fora de seus lindes territoriais.
Além do mais, a existência de decisões divergentes pode gerar um ambiente de descumprimento indesejado em relação a um ou mais comandos. Como a possibilidade de conflitos é real, este artigo defende que a solução mais adequada é limitar a eficácia de decisões judiciais dirigidas a bloquear manifestações na internet aos acessos à rede localizados naquele território.
Quanto à possibilidade de utilização de ferramentas que “mascaram” a real origem da conexão, verificou-se que a medida é conhecida por uma quantidade muito reduzida de pessoas, percentual que parece não comprometer, de maneira decisiva, a efetividade da tutela jurisdicional.
Essa lógica, por exemplo, é aquela aceita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no caso Google v. CNIL (c-507/2017), quando defendido o “desencorajamento” de acessos ao conteúdo tido por infringente.
[1] C-21/76 – Handelskwekerij Bier v. Mines de Potasse d’Alsace.
[2] C-68/93 – Fiona Shevill v. Presse Alliance SA.
[3] TJSP. Agravo de Instrumento 2055830-58.2016.8.26.0000. Rel. Des. J.B. Paula Lima. 10ª Câmara de Direito Privado. Data do Julgamento: 26/07/2016.
[4] TJSP. AI 2059415-21.2016.8.26.0000. Rel. Des. Natan Zelinschi de Arruda. 4ª Câmara de Direito Privado. Data do Julgamento: 11.08.2016.
[5] TJSP. AC 1054138-03.2014.8.26.0100. Rel. Des. Salles Rossi. 8ª Câmara de Direito Privado. Data do Julgamento: 05.04.2017.
SOLANO DE CAMARGO – Sócio-sênior da Lee, Brock, Camargo Advogados, pós-doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP.
FRANCISCO DE MESQUITA LAUX – Doutor e mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Vice-diretor de Processo e Tecnologia e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogado.