As redes sociais, por exemplo, proporcionam hoje a facilitação das conexões interpessoais, aproximando pessoas que possuem os mesmos interesses e possibilitando frequentemente o exercício da liberdade de expressão e da livre manifestação do pensamento entre os usuários, preceitos que são protegidos constitucionalmente.
Os conteúdos postados pelos usuários, inclusive, fomentam o pensamento crítico e o estabelecimento de novas comunidades, assim como promovem a inclusão social e o rompimento de barreiras territoriais.
Nesta seara, uma importante questão a ser discutida, tendo em vista que o que se cria na internet também pode ser considerado como patrimônio, é a chamada herança digital, que se caracteriza pelos bens digitais deixados por seu titular após sua morte.
No Brasil, referido tema ainda necessita de uma discussão mais aprofundada, devendo ser observado que parte da doutrina defende que o conteúdo existencial não deve ser transmitido aos herdeiros, considerando-se a privacidade e a intimidade do falecido, o que é seguido por alguns tribunais. No entanto, recentemente, a 2ª seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.633.254, se viu diante de uma nova questão: a validade de um testamento particular que contou com a impressão digital de sua titular.1
Na ocasião, a ministra relatora Nancy Andrighi brilhantemente ponderou que “A atual sociedade brasileira e mundial é indiscutivelmente menos formalista que àquela existente ao tempo da confecção do Código de Civil que, a despeito de ter entrado em vigor no ano de 2003, originou-se do Projeto de Lei nº 634 de 1975, pensado e gestado, pois, por juristas e especialistas que certamente haviam nascido na década de 40.”.
Ainda, asseverou que “As pessoas do mundo moderno não mais se individualizam e se identificam apenas por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID’s, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida captados a partir da reiterada e diária coleta de seus dados pessoais”, sendo reconhecida a validade da assinatura digital neste caso.
Nota-se com o julgado que, ainda que a interpretação literal do texto legal, por óbvio, seja considerada, o contexto social e cultural vigente da época igualmente deve ser observado, adotando-se, portanto, a técnica hermenêutica histórica-evolutiva para que a aplicação da norma jurídica se adeque à realidade dos destinatários.
Mesmo com a discussão embrionária no Brasil, está em trâmite no Senado Federal o projeto de lei 6.468/192, que ganhou visibilidade com a morte do apresentador Gugu Liberato e o inesperado crescimento do número de seguidores em suas redes sociais após o falecimento3. Referido projeto visa introduzir o parágrafo único no artigo 1.788 do Código Civil, com a seguinte redação:
Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.
Conforme já exposto, a grande crítica que se faz a este dispositivo, mormente os que se manifestam por sua inconstitucionalidade, é a violação da dignidade humana e privacidade do falecido e também de terceiros com quem aquele manteve relações em vida, devendo ser destacada a intransmissibilidade dos direitos de personalidade.
Por outro lado, merece destaque o argumento dos que defendem a aprovação do projeto de lei, no sentido de que a privacidade não está inserida apenas no meio digital, mas também no analógico, como em fotografias ou documentos impressos, sendo que estes são plenamente objeto de sucessão post mortem.
Em que pese a ausência de legislação específica no Brasil, diversas plataformas já se anteciparam e permitem ao usuário formalizar um “testamento digital”, ocasião em que pode escolher, em vida, quais bens digitais e a quem estes serão direcionados após a morte.
Entretanto, para respeitar a privacidade e intimidade do de cujus, algumas redes sociais não permitem que a pessoa selecionada possa ver as mensagens privadas ou realizar novas postagens na conta em nome do falecido, sendo possível a exclusão total da conta ou alterar o nome e a foto do perfil, assim como gerenciar solicitações de contatos.
Noutro giro, aplicando o entendimento de que a privacidade vai além do meio digital, a mais alta corte infraconstitucional alemã (Bundesgerichtshof – BGH), equivalente ao Superior Tribunal de Justiça, na decisão BGH III ZR 183/17 de 12.07.18, se manifestou no sentido de que “se visa tutelar é o caráter existencial do conteúdo, protegendo-se a privacidade, intimidade e personalidade do morto ou de terceiros, essa tutela teria que ser feita independentemente do meio no qual esse conteúdo personalíssimo se materializa”.
Não se pode deixar de observar, ainda, que a grande celeuma atual é que parte do conteúdo digital do de cujus é perfeitamente transmitido, como um pendrive com fotos e cartas íntimas, ao passo que o conteúdo de uma rede social, protegido normalmente por senha, tem outra interpretação legal.
No entanto, em que pese a discussão acerca da transmissão dos direitos digitais em caso de morte, dúvidas não existem quando estamos diante de sucessão testamentária. Com efeito, o artigo 1.857, §2º, do Código Civil é claro ao autorizar que bens que não possuem caráter patrimonial, como os digitais, sejam objeto de testamento:
Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
(…) § 2º São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.
Por esta razão, entende-se que a vontade do titular do direito digital, mais precisamente a negativa, é o elemento essencial para a transmissão aos seus sucessores, de modo que este é quem detém condições e interesse de indicar quais bens digitais serão transmitidos, visando proteger sua privacidade e a de terceiros, o que está em consonância com o decidido pelo BGH.
Ao redor do mundo, além disso, o debate ganha cada vez mais força, eis que a China, grande potência mundial, aprovou neste ano uma emenda de lei que garante ao cidadão o direito de receber a herança também em criptomoedas.4
A medida, que entrará em vigor em 1º de janeiro de 2021, é sem precedentes no campo da economia e um marco importante para a popularização das criptomoedas no país e no mundo5. Originalmente, a herança que era classificada como “ganhos, propriedades imobiliárias, árvores, relíquias culturais e propriedades intelectuais” pelo Código Civil chinês, criado em 1985 e nunca modificado, com a mencionada emenda de lei, passou a determinar que a propriedade legal do falecido inclui ativos da internet como um todo, abrangendo até mesmo contas em plataformas, itens e dinheiros virtuais em jogos6, entre outros.
Nos Estados Unidos, por sua vez, a Comissão de Uniformização de Leis (Uniform Law Commission – ULC) editou um documento a fim de padronizar o tratamento jurídico no âmbito dos arquivos digitais em caso de morte ou incapacidade do titular, o que resultou no Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (UFADAA).
Com a regulamentação, mesmo após o falecimento do titular, os ativos digitais podem ser administrados pelo herdeiro, sendo permitido o acesso para gerenciar arquivos digitais, domínios na internet, moedas virtuais, dentre outros. Entretanto, a norma faz ressalvas quanto aos acessos às comunicações eletrônicas, como as contas em redes sociais e e-mails, sendo necessário o consentimento prévio do titular por meio de testamento, procuração ou outro registro válido.
A grande maioria dos estados norte-americanos aprovou a proposta de lei, vindo tal discussão também a se intensificar após a morte do jogador de basquete Kobe Bryant no início deste ano7.
A título de exemplo, ademais, destaca-se a norma editada no ano de 2005 pelo Estado de Connecticut, que autorizou os herdeiros a acessarem o e-mail e conta pessoal do de cujus, desde que munidos com a certidão de óbito e o certificado de nomeação como procurador ou administrador de bens ou, ainda, por meio de ordem judicial.8
No mesmo sentido, o Estado de Oklahoma, em 2010, emitiu uma regra prevendo a possibilidade de encerramento das contas pessoais do falecido em qualquer rede social ou plataforma de mensagens através de procuradores ou administradores.9
Já na Europa, há o chamado – e mais conhecido – Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (General Data Protection Regulation – GDPR), que prevê expressamente a não aplicabilidade aos dados pessoais de pessoas falecidas, sendo discricionariedade dos Estados-Membros a regularização e estabelecimento destas regras.
Nesse contexto, não obstante a legislação brasileira não progredir na mesma velocidade da tecnologia, como nos demais países, uma alternativa é a utilização dos mecanismos jurídicos para garantir a validade e eficácia das decisões, principalmente para quem elas se destinam.
A recente aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil, inclusive, claramente representa um avanço, em que pese não dispor sobre dados de pessoas já falecidas.
Desta forma, para que eventual medida tenha aceitação entre nossos julgadores, se faz necessário diferenciar conteúdos que envolvem a intimidade e a vida privada do de cujus daqueles que não abarcam questões mais intrínsecas e pessoais, para, somente assim, se iniciar um caminho acerca da atribuição da herança digital aos herdeiros legítimos e caminharmos nessa questão.
Conclui-se, portanto, pela necessidade de se positivar o direito sucessório relativo ao direito digital, em especial pela segurança jurídica. Contudo, devem ser preservados os direitos de personalidade do titular e de terceiros, de modo que cabe àquele decidir, caso entenda necessário, pela não sucessão de parte de seus bens digitais.
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8 LARA, M.F. Herança Digital. 1.ed. Porto Alegre: Edição Própria, 201
9 LARA, M.F. Herança Digital. 1.ed. Porto Alegre: Edição Própria, 2016