Recentemente, em 28 e 29 de maio de 2019, o Congresso Nacional criou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (“ANPD”) e alterou pontos importantes da Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”) – Lei 13.709, com a aprovação da Lei de Conversão n° 7 de 2019.
O texto aprovado seguirá para sanção presidencial e as obrigações estabelecidas pela LGPD passarão a vigorar a partir de agosto de 2020.
Além da criação da ANPD, foram alterados dispositivos importantes relacionados à área da saúde.
A versão inicial da LGPD vedava, a não ser mediante autorização do titular, a comunicação ou o uso compartilhado de dados pessoais sensíveis de saúde (como prontuários), com objetivo de obter vantagem econômica. A partir de agora, será possível a comunicação ou o uso compartilhado desses dados (art. 11, § 4º), desde que o titular consinta ou para a prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde (como os reembolsos).
Uma das principais críticas à LGPD é que ela poderá atrasar os programas de inteligência artificial (IA) que, dentre outras soluções, poderiam diagnosticar o câncer e rastrear distúrbios genéticos.
Na medida em que o art. 11, § 3º da LGPD prevê que a comunicação ou o uso compartilhado de dados pessoais sensíveis entre controladores (como prontuários) poderá ser objeto de vedação ou de regulamentação por parte da autoridade nacional, estabeleceu-se uma zona nebulosa no caminho da inovação na área da saúde.
A AI, para funcionar adequadamente, exige o processamento de uma quantidade enorme de dados.
A partir do progressivo sucesso do reconhecimento de imagens, a IA poderia ajudar os patologistas a identificar rapidamente situações de risco, potencializando o resultado das lâminas ou até indicando possíveis células cancerígenas.
Da mesma maneira, a IA poderia ampliar a eficiência dos exames radiológicos e melhorar a precisão dos diagnósticos.
Muitas são as razões de ordem técnica que contribuem para atraso nas pesquisas. É sempre difícil reunir grandes conjuntos de dados (big data) de saúde que representem uma certa população.
Em primeiro lugar, os dados estão pulverizados em uma infinidade de consultórios, laboratórios e hospitais, que por sua vez usam diferentes sistemas de registros.
Em segundo lugar, é difícil obter informações desses sistemas, pois normalmente os prestadores, em qualquer ramo profissional, não pretendem facilitar a migração dos dados.
Em terceiro lugar, há agora a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Um dos principais efeitos da lei é tornar bem mais difícil que médicos e hospitais compartilhem dados com pesquisadores que podem promover a inovação, como as startups (ou healthtechs).
A lei impõe uma série de restrições e procedimentos, que marca toda a cadeia de uso de dados, ameaçando eventuais incidentes com pesadas multas e interdições.
Os modelos algorítmicos de IA não produzem resultados adequados quando o treinamento é realizado em amostra de dados não representativa. Por essa razão, a tecnologia de reconhecimento facial hoje é muito mais eficaz em homens brancos do que em mulheres negras.[1] Assim, se as startups de saúde utilizarem exclusivamente o banco de dados de um hospital de elite de São Paulo, por exemplo, capaz de implantar todos os cuidados e procedimentos previstos na lei de proteção de dados, corre-se o risco de reproduzir esse preconceito na medicina, marginalizando ainda mais as comunidades pobres de outras regiões.
Para que a sociedade colha os benefícios da AI e das inovações científicas na área da saúde, é necessário repensar e simplificar o compartilhamento de dados, inclusive, com a perspectiva de ganhos financeiros para os investidores.
A primeira medida é a edição de salvaguardas para a pesquisa na área da saúde pela Autoridade Nacional, reconhecendo o “legítimo interesse” para o setor (art. 10) e regulando as hipóteses de tratamento sem o consentimento prévio.
A segunda medida é o acompanhamento das pesquisas e da própria concepção do negócio em conjunto com especialistas na LGPD, evitando-se prejuízos e interrupções.
Considerando a imensa gama de dados pessoais que são entregues diariamente por milhões de brasileiros em redes sociais sem grandes contrapartidas, o compartilhamento de dados na área da saúde parece trazer algo em troca: o potencial para uma vida mais longa e saudável.
[1] https://www.nytimes.com/2018/02/09/technology/facial-recognition-race-artificial-intelligence.html.