Recentemente foi veiculada pela imprensa reportagem que, curiosamente, vinculava a insatisfação da população do município de Guarulhos com a cobrança de taxa de coleta de lixo urbano e variação de ruas com a criação de outra taxa ambiental, a ser cobrada dos responsáveis por aeronaves civis que “sobrevoarem o município de Guarulhos, em atividade de decolagem ou de aterrissagem do Aeroporto Internacional Governador André Franco Montoro”.
Qual é a relação de um assunto com outro? Diante da insatisfação da população da cidade da região metropolitana de São Paulo com a criação e cobrança da taxa do lixo neste ano, o município resolveu criar outra taxa para, em 2023, supostamente substituir a fonte de recursos necessária para custear os serviços de coleta de lixo e varrição na cidade. Não deixa de ser curiosa a alternativa encontrada pelo Poder Público: taxar o sobrevoo de aeronaves.
A própria taxa de coleta do lixo de Guarulhos já conta com suas próprias esquisitices. A primeira delas é vincular o valor da taxa em função do consumo de água, ou seja, quanto maior o consumo de água de determinado imóvel, maior deverá ser a taxa do lixo. Mas não é uma taxa sobre coleta de lixo e varrição? De qualquer forma, sem adentrar em maiores detalhes acerca da taxa do lixo, passa-se a análise daquela outra, começando pelo frio da lei que a instituiu.
A Taxa de Preservação Ambiental (TPA) foi criada pela Lei nº 8.014/2022 do município e tem como fato gerador
“o exercício do regular poder de conferido ao município de Guarulhos em matéria de proteção, preservação e conservação do meio ambiente, incidente sobre o trânsito de aeronaves civis que sobrevoarem a cidade, em atividade de decolagem ou de aterrissagem do Aeroporto Internacional Governador André Franco Montoro, situado neste município, com o objetivo de mitigação e compensação de seus impactos socioambientais”.
Qual mesmo é o poder de polícia desempenhado pelo município no tocante ao trânsito de aeronaves e, sobretudo, no que tange à proteção, preservação e conservação do meio ambiente?
Bem, não menos curioso é o critério quantitativo da taxa: três unidades fiscais de Guarulhos para cada tonelada de peso total da aeronave, peso este a ser considerado quando da decolagem (incluindo peso do combustível, carga e passageiros). Qual seria mesmo a relação do peso da aeronave com as atividades de poder de polícia?
E pasmem: a lei que institui a taxa de poder de polícia não vincula os recursos arrecadados ao custeio do aparato público necessário a exercer o poder de polícia, mas servirá, sim, “ao custeio administrativo e operacional de projetos de cunho ambiental que objetivem a proteção, preservação e conservação do meio ambiente, de projetos de saúde pública, bem como para programas de coleta, remoção e disposição dos resíduos sólidos do município”.
Então está explicado, é uma taxa pelo exercício de poder de polícia sobre trânsito de aeronaves criada para que o município tenha recursos para cuidar do lixo urbano.
Só que não. Taxa é espécie de tributo necessariamente vinculado a determinada atuação pública e, no caso de taxas cobradas pelo exercício do poder de polícia, seu valor deverá ser congruente ao custo do aparato estatal necessário ao exercício do poder de polícia pelo órgão público (fiscalização).
A vinculação ao custeio de serviço público (coleta de lixo e variação e outros) é mais que suficiente para descaracterizar o tributo como taxa decorrente do exercício de poder de polícia.
Aliás, retome-se: não há sequer indício de qual seria a fiscalização (poder de polícia) a ser exercido pelos municípios com relação aos aspectos ambientais do sobrevoo de aeronaves.
A lei municipal de Guarulhos menciona ainda que a cobrança se destinará a “mitigação dos danos socioambientais decorrentes do trânsito de aeronaves civis que sobrevoarem o município de Guarulhos”. Ora não se destina — nem pode se destinar — o tributo taxa, previsto no artigo 145, II da Constituição Federal, à reparação ou mitigação de “danos socioambientais” quaisquer.
A criação da taxa ambiental pelo município, nos termos em que prevista, deturpa e abusa da competência tributária concedia pela constituição, ao buscar recursos para os cofres municipais supostamente tendo por base a queima de combustíveis fósseis pelas aeronaves nos limites do município de Guarulhos. Aliás, atividade esta lícita e provavelmente dentro dos limites toleráveis para atividades empresariais, tais quais as de transporte aéreo.
Se a moda pega, toda e qualquer atividade empresarial, ou mesmo humana, poderia começar a sofrer tributação “compensatória” em razão de impactos socioambientais destas atividades. Algo como uma taxa pelo exercício do poder de polícia cobrada em função do número de BTUs de aparelhos de ar-condicionado instalados.
De outro lado, ainda que a nova taxa do município de Guarulhos pretendesse tributar a utilização “efetiva ou potencial” de serviços públicos específicos e divisíveis, a outro “subespécie” de taxa prevista pela Constituição Federal, esta não poderia ser cobrada a não ser dos beneficiários destes serviços.
Ou seja, a taxa de poder de polícia sobre sobrevoo de aeronaves de Guarulhos, certamente, será derrubada nos tribunais muito antes do início de sua suposta vigência a partir de 2023, notadamente porquanto sua estrutura não guarda a mínima compatibilidade com as características constitucionais deste tipo de tributo ou com a competência tributária atribuída ao Município para a criação de taxas sobre o poder de polícia.
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Eduardo César Muniz Bomfim é advogado, head da área Tributária da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA) e especialização em Direito Empresarial e Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).