Anos atrás, quase ninguém poderia imaginar que a existência de um álbum virtual ou o armazenamento de conteúdos em nuvem substituiria a prática de revelar fotos a partir de um filme de uma máquina fotográfica tradicional. O mesmo ocorre no setor financeiro.
As discussões havidas entre bancos tradicionais e fintechs, inclusive em ações judiciais, decorrem basicamente do fato dessas startups terem crescido em ritmo muito acelerado nos últimos anos, sendo privilegiadas com regulamentações mais brandas, quando comparadas aos bancos.
Apesar de as iniciativas trazidas pelas Resoluções 4.656, 4.567, 4.657 e 4.658 de 2018 do Bacen – Banco Central, que tratam sobre a temática, permanece o hiato entre o direito e as novas tecnologias e os novos modelos de negócio que surgiram, como é o caso das empresas de sistema de pagamento on-line.
Os bancos tradicionais, para fins de funcionamento e por conta dos princípios da Basiléia1 que buscam minimizar riscos, devem atender requisitos que dependem de diversos fatores, como categorias de enquadramento integrantes do Sistema Financeiro Nacional, autorização do Bacen e capital.
Por outro lado, para que fintechs, instituições de pagamento possam funcionar, deveriam ser observados apenas alguns requisitos estabelecidos pela Resolução do Bacen 81/212, dentre eles: (i) a capacidade econômico-financeira dos controladores; (ii) a origem lícita dos recursos utilizados; (iii) a sustentabilidade do modelo de negócio; (iv) a compatibilidade da estrutura de governança de acordo com a complexidade e os riscos do negócio; e (v) requisitos mínimos de capital e patrimônio.
A controvérsia que mais chama atenção refere-se à denominada “assimetria regulatória”, em razão do formato piramidal seguido. Desde 2017, o Conselho Monetário Nacional classificou as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Bacen em cinco segmentos3, observando-se para tanto: porte, perfil de risco e atuação internacional. A situação, consequentemente, faz com que os bancos tradicionais fiquem no topo (com mais regras) e as fintechs na base (com menos regras).
Em suma, os bancos tradicionais estão no segmento 1, classificado para instituições com 10% do PIB ou mais na sua movimentação e atividade. Já o segmento 5, é destinado a instituições financeiras não bancárias com perfil de risco simplificado, cujos ativos representam menos de 0,1% do PIB. Sobre algumas fintechs, estas se encontrariam em nível abaixo ao segmento 5 em termos de requerimentos e simplificação.
Isso significa, por exemplo, que quanto mais alto o segmento, maior o patrimônio exigido pelos órgãos reguladores para mitigar riscos. Todavia, com a ausência de novas regulações para fintechs, teríamos instituições de pagamento com operações maiores do que bancos, mas com requerimento de capital bem inferior.
As fintechs, porém, justificam que, sem certa flexibilidade na regulação, os bancos tradicionais continuariam em um oligopólio4.
Prova disso é que, em 2017, bancos tradicionais foram demandados perante ao CADE em razão de não permitirem que o cliente inserisse a conta do cartão de uma fintech em débito automático, provocando assim problemas em pagamentos e alegados prejuízos concorrenciais. Além do mais, algumas peculiaridades das novas instituições de pagamento fundamentariam a ausência do tratamento isonômico defendido pelos bancos tradicionais.
Em primeiro lugar, a maioria das fintechs operam como meros correspondentes bancários5, ou seja, elas não oferecem crédito sem um banco tradicional por trás e, quando o fazem, devem utilizar apenas capital próprio nessas operações. Em segundo lugar, os serviços e produtos oferecidos são distintos dos bancos tradicionais como, por exemplo, contas virtuais. Em terceiro lugar, os recursos recebidos pelas fintechs ficam integralmente depositados em títulos públicos do Tesouro Nacional.
O Bacen reconhece o desafio de estabelecer um equilíbrio na indústria a fim de impulsionar a concorrência e também tornar o ambiente seguro para os consumidores. Para tanto, algumas soluções foram inseridas para todo o ecossistema financeiro.
A primeira decorre da utilização de Sandbox Regulatório, criado no Reino Unido e implementado no Brasil à luz da Lei Complementar 181/216, conhecida como Marco Legal das Startups. O ambiente basicamente permite que as Fintechs testem inovações no setor financeiro, por período determinado, oferecendo produtos ou serviços para clientes reais, sob supervisão e análise do modelo de negócio pelos respectivos órgãos reguladores (Bacen, SUSEP e CVM).
A segunda solução já vigente diz respeito ao PIX7, sistema de pagamentos instantâneos inserido no mercado em novembro de 2020, que permite a transferência de recursos entre contas em segundos, a qualquer hora ou dia.
A inovação trouxe a possibilidade de pagamentos e envio imediato de valores entre pessoas físicas ou jurídicas, bastando o fornecimento de QRcode ou que os interessados cadastrem uma chave para vinculação das operações (que pode ser CPF, CNPJ, e-mail, celular ou sequência alfanumérica aleatória).
A operação poupa tempo também traz maior segurança a quem não deseja compartilhar integralmente dados pessoais ou bancários, por exemplo.
A terceira solução estratégia diz respeito ao Open Banking, ou sistema financeiro aberto, que é a possibilidade de clientes de produtos e serviços financeiros permitirem o compartilhamento de suas informações entre diferentes instituições autorizadas pelo Banco Central e a movimentação de suas contas bancárias a partir de diferentes plataformas e não apenas pelo aplicativo ou site do banco, de forma segura, ágil e conveniente.8
Antes do Open Banking (atualmente evoluído para o Open Finance, que amplia o compartilhamento de dados para outros setores), uma instituição financeira não tinha acesso às informações do cliente de outra instituição. Agora, a partir da autorização deste cliente, as instituições se conectam diretamente às plataformas de outras instituições financeiras participantes e acessam os dados cujo compartilhamento foi permitido.
Visto que a assimetria regulatória permaneceria, não obstante as soluções implementadas, haveria necessidade mais efetiva de adaptação para Fintechs das normas existentes para bancos tradicionais. Tanto é assim que a consulta pública 78/209, encerrada em janeiro, formalizou o debate de regras mais rígidas para o funcionamento das Fintechs, especialmente instituições de pagamento.
A proposta – ainda pendente de avaliação final pelos órgãos reguladores – considera pontos como porte, lucro e movimentação, o que implica na exigência de um capital maior que, por sua vez, gera mais custo. Os três modelos de enquadramento definidos foram: bancos; Fintechs e empresas de “maquininhas de cartão”; e empresas de pagamento com controle bancário.
Neste sentido, vale dizer que, mesmo não existindo uma definição unânime capaz de atender às expectativas de bancos tradicionais, fintechs e consumidores, talvez estejamos no caminho. O Bacen vem fortalecendo o projeto iniciado em 2016 pela Agenda BC+, na mesma medida que os demais players envolvidos e agentes de mercado também vêm participando de discussões extrajudicialmente e judicialmente.
Assim, para que seja contínuo e saudável o crescimento das fintechs, normas já previstas aos bancos tradicionais e novas regras precisam continuar sendo adequadas não apenas para deixar o setor financeiro em harmonia, mas também para concretizar algumas metas do Bacen, quais sejam:
- aumentar a competição no Sistema Financeiro Nacional;
- melhorar a eficiência dos meios de pagamento;
- fomentar o mercado de crédito;
- diminuir o fluxo de dinheiro;
- reduzir juros, taxas e tarifas administrativas;
- e estimular a educação financeira da população.
O que se pode acreditar, diante de todo este cenário, é que as inovações apresentadas pelas ftendem a se perpetuar no tempo, sobretudo, porque, em geral, tornam muito mais fácil a vida do cidadão no cotidiano.
Analisando as novidades trazidas, da maioria delas decorre (i) a desnecessidade de atendimento físico e consequente comunicação com o consumidor final apenas digitalmente; (ii) menores taxas cobradas nos produtos e serviços oferecidos ou até mesmo na inexistência delas; (iii) utilização de inteligência artificial/robôs para atendimento; (iv) possibilidade de contratar e assinar contratos eletronicamente; etc.
Agora, cabe aos bancos tradicionais agir com rapidez e criatividade para apresentarem produtos ou soluções tão inovadoras quanto às trazidas pelas fintechs, aproveitando, inclusive, a vantagem financeira que lhes permite o investimento em tecnologia e em profissionais capacitados, além da confiabilidade que construíram ao longo da história.
Os gigantes do sistema precisarão trazer soluções convidativas quando o assunto diz respeito, por exemplo, a questões financeiras da vida que, para clientes ou possíveis clientes, normalmente são mais importantes, como contratação de seguro de vida, financiamento de bem imóvel ou planejamento de aposentadoria.
O vazio regulatório e a ausência de um conjunto de decisões judiciais consolidado devem permanecer em razão da velocidade gerada pela tecnologia e pela evolução das estruturas de negócios. A lei não é capaz de acompanhar concomitantemente o que é desenvolvido na e para sociedade.
Por isso, conclui-se que deve haver maior integração entre bancos e fintechs, especialmente no que tange à personalização de serviços e produtos, que é o que vem conquistando novos consumidores, bem como garantindo a fidelidade de clientes e posições no mercado.
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1 https://www.bcb.gov.br/fis/supervisao/docs/core_principles_traducao2006.pdf
3 Segmento 1 (S1): Bancos múltiplos, bancos comerciais, bancos de investimento, bancos de câmbio e caixas econômicas que: tenham porte igual ou superior a 10% (dez por cento) do Produto Interno Bruto (PIB); ou exerçam atividade internacional relevante, independentemente do porte da instituição.
Segmento 2 (S2): Bancos múltiplos, bancos comerciais, bancos de investimento, bancos de câmbio e caixas econômicas, de porte inferior a 10% (dez por cento) e igual ou superior a 1% (um por cento) do PIB; e demais instituições de porte igual ou superior a 1% (um por cento) do PIB.
Segmento 3 (S3): Instituições de porte inferior a 1% (um por cento) e igual ou superior a 0,1% (um décimo por cento) do PIB.
Segmento 4 (S4): Instituições de porte inferior a 0,1% (um décimo por cento) do PIB.
Segmento 5 (S5): Instituições de porte inferior a 0,1% (um décimo por cento) do PIB que utilizem metodologia facultativa simplificada para apuração dos requerimentos mínimos de Patrimônio de Referência (PR), de Nível I e de Capital Principal, exceto bancos múltiplos, bancos comerciais, bancos de investimento, bancos de câmbio e caixas econômicas; e Instituições não sujeitas a apuração de PR.
https://www.anbima.com.br/pt_br/informar/regulacao/informe-de-legislacao/segmentacao-do-sistema-financeiro-nacional.htm
4 Na economia, Oligopólio é uma forma evoluída de monopólio, no qual um grupo de organizações ou governos promovem o domínio de determinada oferta de produtos e/ou serviços.
5 O Banco Central define correspondente bancário como “empresa contratada por instituições financeiras e demais instituições autorizadas pelo Banco Central para a prestação de serviços de atendimento aos clientes e usuários dessas instituições.” https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/perguntasfrequentes-respostas/faq_correspondentes
6 https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-complementar-n-182-de-1-de-junho-de-2021-323558527
7 https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/pix
8 https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/openbanking
9 https://www3.bcb.gov.br/audpub/DetalharAudienciaPage?3
Thays Bertoncini da Silva
Advogada, sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA) e especialista em Direito Digital Aplicado e Direito das Plataformas Digitais pela FGV.