Para discorrer sobre cegueira deliberada é necessário, mesmo que superficialmente, comentar um pouco sobre compliance e a figura do compliance officer.
Com a publicação da Resolução n.º 2554, de 24.09.1998 do Banco Central, o sistema financeiro nacional instituiu regras oriundas da Europa (Comitê Basiléia) e dos Estados Unidos (SEC – Securities and Exchange Commission). No mesmo ano foi promulgada a Lei de Lavagem de Dinheiro 9.613/1998, responsável pela criação do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), órgão do Ministério da Fazenda. Em 2013 foi promulgada a Lei Anticorrupção 12.846, que é a legislação mais conhecida sobre compliance.
Após a promulgação da Lei Anticorrupção (Lei 12.4846/13), os empresários brasileiros passaram a ter preocupação com a legalidade de suas atividades. Com o surgimento do compliance nasce o compliance officer, definido como profissional independente e não vinculado a outra atividade, empoderado com os deveres de fiscalização e cumprimento das normas de compliance instituídas no programa de integridade da empresa. Independente porque deve ter trânsito livre, inclusive junto à diretoria e à presidência de grandes empresas, o que possibilitará o desenvolvimento de seu mister sem influências internas.
A partir desse momento, verifica-se uma verdadeira substituição na cadeia de responsabilidades, pois o acionista, o presidente ou outras figuras que ocupem posição de liderança deixam de ser responsáveis por todo e qualquer ato de seus funcionários e terceiros. Ou seja, o dever de fiscalização sai das mãos desses dirigentes e passa ao compliance officer.
Mas esta transferência de responsabilidade é absoluta? Não! O compliance officer, mesmo que responsável pela fiscalização e cumprimento das regras do programa de integridade, não substitui integralmente a alta administração, pois há um limite da delegação de responsabilidade, sendo que ignorar normas e legislação não exime nenhum dirigente de responsabilização.
Permanecer alheio a todas as normas, apenas pela existência de um programa de compliance e de um compliance officer, como se cego estivesse para a realidade, não isenta o agente de responsabilização nos âmbitos civil, administrativo e penal. A falsa ignorância dos fatos responsabiliza o agente pela aplicação da teoria da cegueira deliberada.
A cegueira deliberada, também conhecida como teoria da ignorância deliberada ou “willfull blindness”, em inglês, tem ganhado espaço cada vez mais no Brasil. Sua aplicação fez-se presente em um dos julgamentos mais emblemáticos do Brasil, qual seja, a ação penal 470 (Mensalão).
Na ocasião do julgamento do mensalão, o ministro Celso de Mello reconheceu o dolo eventual amparado na teoria da cegueira deliberada, destacando a necessidade de cautela na aplicação, senão vejamos.
“Admito a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores, mediante o dolo eventual, exatamente com apoio no critério denominado por alguns como ‘teoria da cegueira deliberada’, que deve ser usado com muita cautela”
E o entendimento aplicado naquela oportunidade, hoje irradia-se pelo Judiciário brasileiro, sendo aplicado em outras decisões como, por exemplo, em uma sentença condenatória da lavra do juiz Marcelo Bretas, cujo trecho segue “…Por outro lado, o terceiro responsável pela lavagem que procure, deliberadamente, evitar a consciência quanto à origem ilícita dos valores deve ser responsabilizado ante a ocorrência do dolo eventual previsto no artigo 18, inciso I do Código Penal, já que o agente assumiu o risco de produzir o resultado. Em tais situações, ganha relevo a aplicação da denominada teoria da cegueira deliberada em circunstâncias em que os agentes voluntariamente fazem vistas grossas aos sinais evidentes do delito, à alta probabilidade da procedência espúria dos bens, valores e direitos envolvidos ou se recusam a adquirir um conhecimento acerca da prática de um crime. Por força dessa teoria, esse agente responde como se tivesse conhecimento da origem ilícita dos valores, sendo plenamente possível que venham a sofrer condenação pela prática do delito de lavagem de dinheiro. “ (grifamos)
O saber e o fingir não saber devem ser interpretados com cautela, como no exemplo fictício a seguir.
Um diretor financeiro de uma empreiteira de renome, que participa de diversas licitações junto ao poder público, libera verba de R$ 5.000.000 (cinco milhões de reais) para fornecimento de cimento, visando a construção de uma ponte de 2 KM (quatro) na região de Manaus/AM.
A referida empreiteira tem como expertise a construção de pontes, pois já as construiu em diversas localidades do país. Acrescenta-se ao fato que comumente são liberados R$ 3.500,00 (três milhões e quinhentos mil reais) para compra de cimento, a serem empregados nas construções de pontes em regiões mais caras do país, sendo que referidas obras ultrapassam 4 KM (oito).
Ocorre que anos depois, o Ministério Público, após investigação, denuncia o compliance officer e o diretor financeiro da empreiteira por corrupção ativa e lavagem de dinheiro.
O que se pretende no exemplo acima é chamar a atenção para o dever de diligência dos empresários, agentes financeiros, funcionários de empresas privadas, servidores públicos, dentre outros, em relação à moralidade administrativa, respeito às legislações brasileiras e aos programas de compliance. Não pode o agente, qualquer que seja, ignorar solenemente situações que o homem médio perceberia em uma simples análise.
Desta feita, pode-se concluir pelas mudanças que a sociedade moderna enfrenta, principalmente nas relações entre entes privados e públicos, que as normas e procedimentos previstos em um programa de compliance necessitam aplicabilidade prática e não apenas teórica. Criar um programa de compliance e eleger representantes, os ditos compliance officers, permanecendo cegos a toda e qualquer conduta ilegal ou imoral não eximirá o agente de responsabilização.
Essa responsabilização é clara, pois o Judiciário brasileiro, sobretudo os Tribunais Superiores, inclinam-se ao reconhecimento da teoria da cegueira deliberada, evolução esta muito importante para resgatar a confiabilidade das relações empresariais e, sobretudo, o investimento externo.
Contudo, no que pese a importância do tema, diversas empresas, sejam de pequeno, médio ou grande porte, ainda não detêm um programa de integridade e políticas de compliance consolidadas e divulgadas entre sócios, funcionários e fornecedores. E este “atraso” pode custar caro. Investir em programas de compliance não pode mais ser visto como desperdício de tempo e dinheiro, mas sim como um investimento que, com certeza, trará retorno significativo às empresas, atrelando uma robusta governança corporativa, qualidade e confiabilidade aos seus negócios.
*Jayme Barbosa Lima Netto é advogado e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA)