O uso da fotografia para identificação de suspeitos surge em 1852, na Suíça, quando um fotógrafo pioneiro, Carl Durheim, foi contratado pelas autoridades para registrar a imagem de indivíduos desconhecidos e suspeitos na análise da polícia local; mas foi na Inglaterra, em 1870, que teve início o registro fotográfico de “criminosos habituais”, que eram arquivados de acordo com o crime praticado. Já naquela época havia um descrédito diante deste tipo de identificação por parte da polícia.
No Brasil, o álbum de fotos de suspeitos é de uso corrente, com base no Código de Processo Penal (art.226). É mais uma ferramenta frágil contra o crime e um elemento a mais a rondar inocentes, especialmente jovens pretos e pobres, uma vez que podem implicar em uma seletividade étnico-racial. Há até casos em que a captação de fotos para o álbum de suspeitos é retirada de redes sociais, de perfis públicos.
Recentemente fez mais uma vítima: o influenciador e palestrante negro, Thiago Torres (Chavoso da USP), estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, que teve sua foto incluída em um álbum de suspeitos da Polícia, dentro de um inquérito sobre sequestro.
Para Torres, que não é investigado por qualquer delito, a inclusão da sua foto tem carga de racismo estrutural e preconceito contra a estética periférica (colares, pulseiras, tatuagens e bonés que usa) e os conteúdos que debate em seu canal contra o racismo, a meritocracia, a segregação de pretos e mulheres etc.
Como entendeu o psiquiatra Frantz Fanon (1925-1961), o corpo negro é feito de mil detalhes, constituindo um terreno epidérmico de racismo, de invisibilidade e hierarquização, sendo sustentado pela ideologia da supremacia branca e do colonialismo. Na sociedade, o negro sempre será lembrado que é um negro e os conflitos que o envolvem serão administrados pela violência, porque decorrem do “inferiorizado”, que vive na zona do “não ser”. Para Fanon, “o negro não deve mais ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir”.
Urge buscar um novo humanismo, com respeito à diversidade e inclusão, para caminharmos no sentido da mudança.¹
A prova de identificação por meio de álbum de fotos foi alterada no ano passado, quando o Senado Federal aprovou o substitutivo ao Projeto de Lei PL676/2021, modificando algumas regras para o reconhecimento fotográfico nas delegacias brasileiras.
“São vedadas a apresentação de fotografias que se refiram somente a pessoas suspeitas, integrantes de álbuns de suspeitos, extraídas de redes sociais, restritas a amigos ou associados conhecidos de suspeito já identificado ou de suspeitos de outros crimes semelhantes, bem como a apresentação informal de fotografias por autoridades de polícia judiciária ou de policiamento ostensivo”, diz o texto projeto, agora em tramitação na Câmara dos Deputados.
Levantamento inédito feito pelo CONDEGE (Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais) e Defensoria Pública do Rio de Janeiro, confirma torres. Em 83% dos casos, os negros são as vítimas desse tipo de erro. Entre 2012 e 2020, 90 pessoas foram presas injustamente através de uma fotografia, que integrava o “álbum de suspeitos” em delegacias.
A pesquisa da Defensoria também chama a atenção para um ponto importante: o erro de reconhecimento fotográfico não é citado nos julgados e se utiliza termos correlatos, como “inconsistência, fragilidade, insuficiência, insegurança, incerteza, dúvida, induzimento, vício e procedimento”.
Paralelamente, a Defensoria também criou o Observatório de Reconhecimento Fotográfico, que faz o monitoramento e revisão de casos envolvendo reconhecimentos fotográficos no sentido que os Juízos reavaliem a prisão, uma vez que viola o art. 226 do Código Penal.
O álbum de suspeitos de uma delegacia pode ser comparado a uma “roleta russa”. Essa comparação foi feita pelo juiz da 1ª Vara Criminal de Nilópois (RJ), que determinou a exclusão da foto de um homem preto do cadastro de suspeitos da 57ª DP do Rio de Janeiro, depois de ter sido alvo de inúmeros reconhecimentos por parte de vítimas, com nove denúncias, tendo sido absolvido em sete e com duas ainda em tramitação.
Segundo o juiz, sua imagem captada pela polícia somente deveria ser utilizada com sua autorização, evitando que fosse empregada como meio de prova contra si mesmo. (Art. 20 do Código Civil e o art. 13, inciso III, da Lei de Abuso de Autoridade – Lei 13.869/2019).
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar HC 729802/SC ano passado, firmou entendimento que o reconhecimento fotográfico tem de observar o art. 226 do Código de Processo Penal, como sendo garantia mínima para o suspeito de prática de um crime: “O reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível”. Os riscos de reconhecimento falho não pode servir de base para uma condenação. Pela orientação do STJ, “o reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal ,ainda que confirmado em juízo”.
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Mas a arbitrariedade é recorrente. O músico Luiz Carlos Justino, por exemplo, foi preso em 2020 durante uma blitz policial, reconhecido por foto no álbum de suspeitos da Delegacia de Polícia de Niterói (RJ). O próprio juiz que revogou a prisão do músico e mandou retirar sua foto, fez a pergunta que não quer calar: “por que um jovem negro, violoncelista, que nunca teve passagem pela polícia, inspiraria ‘desconfiança’ para constar em um álbum? Como essa foto foi parar no procedimento?”
Nesse contexto, nada justifica uma desmedida subversão da garantia constitucional da presunção de inocência, hipervalorizando a liberdade probatória das autoridades de segurança pública (art. 6º, III do Código de Processo Penal), para obrigar que o cidadão (sobretudo, jovem, negro e periférico).
na posição de investigado, seja submetido a um procedimento inquisitório contaminado pelo racismo visceral presente nas instituições, violando todos os princípios de direitos humanos que o País deveria observar, como signatário de tratados.
O debate sobre o racismo institucionalizado é um fato no Brasil e no Exterior. Tanto que nos Estados Unidos, o Innocence Projet, aponta que em 69% dos casos de identificação ocular são equivocadas e contribuem para a condenação de pessoas inocentes, sendo a principal causa de condenações injustas. Esse tema já fez parte da série documental “The Innocence Files”.
Com o avanço da tecnologia, o novo “álbum de suspeitos” vem sendo alimentado pelas fotos das redes sociais. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Polícia monitora as redes sociais para alimentar algoritmos de reconhecimento facial com fotos retiradas dos perfis e de manifestações públicas, buscando semelhanças com rostos de suspeito ou condenados dos bancos de dados policiais.
Também são utilizados algoritmos de busca aplicados ao reconhecimento facial, sem as devidas salvaguardas, principalmente contra as minorias raciais. Os norte-americanos comparam a tecnologia de reconhecimento facial à lei das lanternas do século XVIII, pela qual todas as pessoas escravizadas deveriam portar lanternas de velas ao se deslocar pela cidade para facilitar a identificação.
Os críticos afirmam que nos EUA, as câmeras de reconhecimento facial estão em número maior nos bairros negros do que nos brancos e ainda se busca um denominador mais equitativo.
A discriminação no reconhecimento facial causa danos, leva as vítimas à autocensura e à restrição de seu ativismo com medo do monitoramento digital e de condenações injustas.
Lá como aqui, são recorrentes as afirmativas de que não somos um país racista. A intolerância e o preconceito étnico-racial são naturalizados e há um histórico de criminalização e encarceramento de pretos e pretas. Não há um levantamento, seja institucional ou de pesquisadores acadêmicos, sobre quantas fotos de negros foram inseridas indevidamente nos álbuns de suspeitos das delegacias pelo Brasil afora? São práticas nefastas de identificação pessoal, que atropelam direitos fundamentais, sendo este mais um capítulo sobre a necessidade de um acerto de contas entre o Estado de Direito e o racismo estrutural no país.
SANTAMARIA NOGUEIRA SILVEIRA – Jornalista, gerente de conteúdo da LBCA, doutora pela ECA-USP e mestre pela FFLCH-USP
GLAUCIA ARRUDA – Advogada e sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados e integrante do Subcomitê Afro do escritório.
ANDERSON DOS SANTOS ARAUJO – Advogado e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados e integrante do Subcomitê Afro do escritório.