Contrariando a cultura norte-americana de que “tempo é dinheiro”, mas na linha de olhar para frente e não se aprisionar a eventuais equívocos passados, a Securities and Exchange Commission (SEC) – equivalente norte-americana da CVM – até demorou, mas, agora, pôs em consulta pública até 21 de maio as propostas de mudança voltadas a aprimorar e padronizar a divulgação de dados sobre como as empresas gerenciam seus riscos climáticos e como isso tem reflexos em seus negócios.
É um texto de cerca de 500 páginas, alvo de muitas críticas pelo alto nível de exigência e até de aparente excesso regulatório que pode, ou não, enfrentar desafios legais.
O coração dessas mudanças está na veracidade das informações que as empresas passam aos investidores sobre seus riscos ambientais, sociais e de governança, o ESG.
A pandemia agravou muito os perigos no âmbito da comunicação, fomentando as fake news, a guerra de narrativas e a pós-verdade, embora estejamos numa sociedade digital que, em tese, deveria contar com mais transparência. A pós-verdade pode ser entendida como um adjetivo, pelo qual os dados e estatísticas teriam menos importância diante das novas condições da produção de sentido.
Portanto, classificar uma informação como falsa ou verdadeira dependerá dos matizes ideológicos e do nível de circulação daquela informação porque as pessoas se tornaram mais apegadas às suas crenças e podem atribuir o “selo de verdade” a uma informação que seja muito mais homogênea aos seus sentimentos e convicções.
Independentemente desse fenômeno, com a sua nova proposta de regulação, a SEC cria uma demanda pela verdade dos dados corporativos, sem meios-termos, subterfúgios, construções paralelas, legitimação de quem fala e meias-verdades, mantendo-se fiel ao conselho ético de Aristóteles de que “o menor desvio inicial da verdade multiplica-se ao infinito à medida que avança”.
Assim sendo, a verdade factual pode ser um remédio efetivo contra as múltiplas versões do “washing” em circulação no mercado, que tentam dar um verniz de veracidade a falsas práticas de sustentabilidade.
Antes dessa proposta, a SEC divulgou suas prioridades para 2022. Dentre elas, citou os investimentos ESG – de boas práticas ambientais, sociais e de governança – por constituírem uma tendência emergente e reforçou a necessidade de uma divulgação precisa de dados por parte das empresas aos investidores. Até agora, a divulgação sobre os riscos climáticos era prestada voluntariamente, mas o novo regramento da SEC busca atingir disposições mais precisas relacionadas aos fatores ESG.
A verdade, enquanto um valor, também lastreia o trabalho da força-tarefa climática e o ESG da agência norte-americana, que ingressou, no final de abril deste ano, com uma ação contra a mineradora brasileira Vale no Tribunal do Distrito Leste de Nova York.
A ação é fundada em suposta manipulação de auditoria de segurança, divulgação de informações imprecisas, obtenção de certificados inexatos sobre a estabilidade da barragem de Brumadinho (MG), que veio a se romper em 2019, causando 270 mortes e impactos ambientais com enormes prejuízos também para investidores internacionais.
Todas essas acusações são negadas pela mineradora. O processo é resultado de um ano de trabalho da força-tarefa, criada no ano passado, com foco inicial voltado a investigar lacunas ou distorções na divulgação de riscos climáticos e a analisar questões de conformidade com estratégias ESG e possíveis violações às regulações aplicáveis.
Mas por que as empresas brasileiras precisam se preocupar com o novo regramento da SEC? Pelo mesmo motivo que a Petrobras, em 2018, veio a ser multada em US$ 1,78 bilhão pela agência norte-americana por participar de um esquema de corrupção, cujos recursos destinados a operações ilícitas eram registrados no balanço como investimentos.
A SEC monitora todas as empresas com ações listadas nas Bolsas norte-americanas, sujeitas, portanto, à toda gama de regulações locais. No exemplo destacado, a petrolífera brasileira chegou a um acordo extrajudicial com a agência por ter passado informações falsas aos investidores e teve de amargar prejuízos financeiros e reputacionais.
As novas regras da SEC sobre as informações que devem ser prestadas pelas empresas sobre os riscos climáticos estão muito mais rígidas. Devem ganhar padronização para que seja possível comparar a performance de cada companhia diante dos fatores ESG, além de aproximar o regramento norte-americano àqueles desenvolvidos na União Europeia, no Reino Unido, Japão e outros países.
Depois de conviver com relatórios voluntários de sustentabilidade disponibilizados pelas corporações, a SEC busca virar o jogo para seu comando ao impor regras de informações mais consistentes, comparáveis e confiáveis.
A nova proposta põe, como estrutura, as recomendações da TCFD (Força-tarefa para divulgações financeiras relacionadas ao clima) e do Greenhouse Gas Protocol. Este último, menos conhecido no Brasil, fornece orientações para preparar um inventário de interação de gases de efeito estufa (GEE) em nível corporativo, além de estabelecer um padrão para a cadeia de valor das empresas.
As emissões de GEE terão um papel de destaque nas novas regras. As empresas serão classificadas em três escopos diferentes. O primeiro envolve as emissões diretas associadas à queima de combustível fóssil no local para produção de energia.
O segundo inclui emissões indiretas da empresa associadas à energia produzida fora do local (eletricidade e refrigeração, por exemplo) e consumida por ela.
O terceiro concentra o foco da polêmica, já que envolve as emissões indiretas de uma empresa, como, por exemplo, as viagens de negócios, transportes de funcionários e de produtos etc.
Ainda que a SEC veja que as empresas não possam controlar todas as atividades em sua cadeia de valor (organização e prática), vislumbra que podem e devem influenciar as atividades de seus fornecedores e distribuidores, enfim, de toda a gama que compõe a cadeia de suprimentos.
Os riscos relacionados ao clima, na versão do novo regramento da SEC, podem ser de dois tipos: físicos, com definição de localização, natureza, processos e operações; e de transição, envolvendo os aspectos regulatórios, tecnológicos etc. Tal divisão permite que os investidores possam compreender melhor a natureza dos riscos e dos possíveis planos de mitigação. Na avaliação de um risco, a empresa deve estimar sua magnitude e probabilidade de duração, se são de curto, médio ou longo prazo.
Pela norma proposta, o nível de detalhamento cresce se comparado ao que as empresas realizam atualmente. Elas deverão identificar, avaliar e gerenciar os riscos climáticos, além de divulgar os impactos que esses riscos terão sobre suas operações comerciais, produtos ou serviços na cadeia de valor, atividades de mitigação, gastos com pesquisa e outros fatores que sejam significativos.
No que tange à governança, as empresas devem divulgar quem são os membros do conselho ou comitês responsáveis pela supervisão de riscos climáticos, frequência com que o assunto é discutido, se esses riscos são vistos como estratégia de negócios e como o programa de metas relacionadas ao clima é supervisionado e com que regularidade os conselhos ou comitês recebem relatórios da administração sobre tais riscos.
A exemplo das novas propostas da SEC, a recente Diretiva Due Diligence de Sustentabilidade Corporativa da União Europeia também tem estreita relação com os critérios ESG, pois visa a conferir maior transparência ao exigir que as empresas comuniquem publicamente seu dever de diligência (art. 11), expresso nas atividades voltadas a identificar, prevenir e mitigar os impactos de suas operações frente aos direitos humanos e ao meio ambiente, pilares “S” e “E” do ESG.
A Diretiva da União Europeia está voltada, inicialmente, a empresas com 500 empregados e faturamento líquido anual de € 150 milhões, devendo ser ampliada para atingir as companhias com 250 empregados e € 40 milhões de faturamento líquido anual, além daquelas corporações que atuam em segmento considerado de alto risco ambiental e social, como de indústria têxtil, de bens agrícolas, animais, madeira, alimentos e bebidas, de petróleo e de recursos minerais, entre outros.
A Diretiva Due Diligence se aplica às subsidiárias das matrizes europeias enquanto integrantes da cadeia de fornecedores de gás natural, carvão, lenhite, petróleo e metais, bem como de todos outros recursos minerais não metálicos e produtos de pedreira, de fabricante de produtos metálicos de base, de outros produtos minerais não metálicos e produtos metálicos transformados (exceto máquinas e equipamentos).
Também de comércio por grosso de minerais, produtos básicos e intermediários (incluídos minerais metálicos e metais, materiais de construção, produtos químicos e outros produtos intermediários).
Ficam excluídas do cumprimento dessa Diretiva as pequenas e médias empresas europeias, que serão apoiadas para integrar sua adaptação à sustentabilidade.
No Brasil, na mesma linha, a Comissão de Valores Mobiliários também publicou alteração das regras do Formulário de Referência para as companhias de capital aberto por meio da Resolução CVM 59, que atualiza as Instruções CVM 480 e 481, a viger a partir de 2023.
Essa nova norma estabelece exigências para as empresas no sentido de prestarem informações mais detalhadas sobre as práticas ambientais, sociais e de governança, inclusive dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (os ODS da Agenda 2030 da ONU), devidamente aferidas por entidades de auditorias independentes, a fim de assegurar mais transparência para os investidores, seguindo, dessa maneira, a tendência mundial.
Durante a pandemia, o processo de desinformação cresceu exponencialmente, principalmente porque a ciência e a imprensa, até então atores legitimados em divulgar “a verdade”, vêm disputando “credibilidade” com conteúdos falsos nas redes sociais, nesses tempos de pós-verdade.
Contudo, é importante ressaltar que uma empresa não é uma usuária anônima que faz um post de alcance restrito sobre uma notícia falsa. Daí a importância do “cerco regulatório” que se fecha em torno de uma maior transparência sobre os dados corporativos.
A não observância por parte das empresas dessa nova ordem podem causar impactos adversos a seus stakeholders, que são justamente os grupos ou pessoas que podem afetar ou serem afetados pela empresa na consecução de seus objetivos sociais, ou seja, os participantes ou interessados diretos e indiretos de uma corporação, que vão desde os acionistas e consumidores, passando pelos colaboradores, fornecedores e investidores, e chegando até a sociedade em geral.
Afinal, a mudança do clima a partir de um determinado ponto geográfico acaba por refletir as condições climáticas de uma outra região, mesmo que situada do outro lado do planeta.
—
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
FABIO RIVELLI – Sócio da LBCA. Master in Business Administration pelo Insper e mestrando em direito pela PUC-SP
SANTAMARIA NOGUEIRA SILVEIRA – Jornalista, gerente de conteúdo da LBCA e Doutora em Comunicação Social pela USP.